domingo, 11 de fevereiro de 2024

 Do livro: 

Contos, memórias e alguma poesia


ASSÉDE PAIVA
 A PENSÃO DE DONA ASSUNTA


 

“Ninguém passa pela vida em brancas nuvens.”

  

“Por que existo?”

“Onde estou? Por que estou aqui?”

“Quem sou eu?”

“O que eu quero?”

“Pra onde estou indo?”

“Meu Deus! Por que voltei?”

“Era preciso voltar... após cinquenta anos sem esquecer...”

“Onde ficava a maldita Pensão?”

“Vamos viajar no tempo...”

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Era em 1953.

Eu, adolescente, estava inquieto quanto ao destino e em crise existencial.

Perguntas iam e vinham sem respostas: Que será de mim? Tenho algum futuro neste povoado? Vale a pena viver? Desesperança...

Na encruzilhada da vida, fiz o que achei melhor: pus algumas roupas na mala de viagem e parti sem saber para onde ia; talvez para onde soprasse o vento. De certa forma, o caminho mais viável seria o Rio de Janeiro, e, assim, peguei o ônibus para o destino escolhido: Rio.

A empresa de ônibus tinha a sigla EVA, que queria dizer “Empresa Viação Automobilística”. Quatro horas e meia após o início da viagem, desembarquei no terminal Mariano Procópio, sito na Praça Mauá. Desajeitadamente, com o malão de viagem batendo em minhas canelas, eu pisei no asfalto ao lado do Terminal rodoviário. Li o letreiro: Hotel Éden, e a ele me dirigi. O hotel, um mafuá de terceira qualidade, na verdade, alugava quartos para encontros de casais; ou seja, para prostituição. O nome do hotel era mesmo apelativo. Mesmo assim, não pensei duas vezes e, graças à boa vontade do porteiro, consegui um cantinho, um cubículo, para passar a noite, debaixo de uma escada que rangia a cada passo. E fiquei hospedado dias e dias. Ufa! Economizei o máximo, comendo pastéis, sanduíches e bebendo refrigerantes, enquanto procurava “colocação”, emprego em uma firma qualquer. Não consegui nada, porque mal conhecia a cidade e, quando chegava a um endereço indicado, a vaga já tinha sido preenchida. Preenchida! Preenchida! Preenchida! E assim, vinte e dois dias, se passaram, e eu desisti. Resolvi viajar para a cidade de São Paulo, que, naquele tempo, era chamada locomotiva do Brasil. Embarquei na Viação Cometa, que vendia bilhete mais em conta; e em oito horas estava na grande metrópole. Mais uma vez, me dirigi à primeira pousada, no bairro do Brás, onde o letreiro indicava: “Vagas para solteiros”. Paguei a primeira diária e subi dois andares, segurando corrimão podre, e escada pronta pra desabar. Eu não podia ser exigente, pois a verba era curta. No mesmo dia, fui ao endereço de antigo conterrâneo, que já estava na Capital havia alguns anos. A pousada dele era pior do que a minha, acreditem! Na verdade, um pardieiro que ficava no subsolo de casarão colonial. Quando entrei no quarto, senti que era bastante abafado, escuro e tresandando mofo. Esperei e conversei com o “conterra”, que, embora me atendesse cordialmente, não me ofereceu nada, nem auxílio, nem refeição, nem esperança. Então, voltei ao “hotel” curtindo minha solidão. No andar inteiro, enorme, não havia qualquer divisória. Quem deitasse numa cama do lado norte, ouviria perfeitamente o rádio do companheiro noutra cama, na zona sul, eu não dormia nada. Assim sendo, fui procurar outro “conhecido”, Jairo Pimont. Havíamos nos encontrado em Ewbank, Minas, e fizemos tênue amizade. Apesar da superficial relação, corri atrás do fio de esperança: “Quem sabe de onde não se espera é que vem?” Jairo morava na Rua Tabatinguera, numa ladeira no centro da cidade. Bem recebido por ele, tomei coragem e lhe transmiti o desejo de me empregar na Capital Paulista.

Tive sorte, a firma onde Jairo trabalhava precisava de um estoquista. Sua planta ficava na Avenida Santo Amaro, no Brooklin paulista, bairro periférico, do outro lado da cidade. No dia seguinte, fomos à fábrica que trazia o nome no topo do galpão o nome: C****. Ela fabricava bicicletas. No escritório da empresa, me apresentaram ao Chefe do Departamento de Pessoal e fui “fichado”, melhor dizendo, admitido. O gerente era B****. Num esforço extraordinário de memória, lembro-me de que o chefe da Seção de Estoque era seu Henrique, que, em tempo de carnaval, gostava de cantar a modinha que fazia grande sucesso na época:

 

“Você pensa que cachaça é água?
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão.”

 

Ou, então: As águas vão rolar (que ele achava que se devia cantar: As águas vão rolarem).

O chefe do Departamento de Pessoal indicou-me uma pensão que ficava na mesma rua, a dois quilômetros. Para ela me dirigi, com a surrada e enorme mala de viagem nas costas.

A pensão de Dona Assunta não trazia qualquer dístico; ficava pouco acima do nível da rua. Era um enorme casarão, tendo à frente frondosa figueira-branca. No Brasil Império, com certeza, fora o solar de algum barão do café; agora, uma casa carcomida, encardida, suja: um cortiço. Removeram as paredes divisórias, criando enorme salão, para os locatários/pensionistas. Éramos vinte e quatro, todos nordestinos, exceto um mineiro: eu, uai! Todos eles gente boa e sofrida como eu. As camas praticamente unidas; os armários mal davam para que neles se guardassem as roupas, sabonete, aparelho de barbear, pasta de dentes, escova, chinelas de dedo, sapato e outras tralhas. Ao fundo, uma parede separava a cozinha e o refeitório dos hóspedes. Atrás da casa as precárias instalações sanitárias: vaso e chuveiro. A latrina não era limpa, explicando melhor, o WC era só higienizado no final de semana. Dá para imaginar o fedor que exalava, porque as fezes se acumulavam até extravasar do vaso sanitário. E cada tolete! Uma cloaca. E o xixi... Pense num piso pleno de urina. A sujeira atraía as repulsivas moscas. Asco!

E como comia a rapaziada! A mesma gororoba todo dia: arroz, feijão mulatinho, inteiro; bertalha, e um pedaço de carne de vaca: aponevrose e aparas. De manhã, um pão francês, manteiga rançosa e café. Excepcionalmente, havia macarronada nos feriados.

Dona Assunta não se importava com a qualidade da alimentação, nem com a higiene. Ela só pensava no dinheiro que entrava no cofre. Tinha de ser assim, porque ela não confiava em ninguém, e já havia tomado alguns “beiços”. Ela, a filha, a neta e o genro moravam ao lado da pensão e tinham vida simples, independente de nós, os pensionistas. Dona Assunta era vermelha, gordona, sangue italiano, gritava muito, discutia com o filho e, quando a netinha chegava perto, ela dizia: “Pinica daqui!” e a menina esfumaçava. Não eram más pessoas, absolutamente.

Como controlador de estoque, trabalhei na empresa por três meses. Caí na esparrela de acreditar em anúncio de jornal, oferecendo vaga para emissor de notas fiscais, pagando salário bem superior ao que eu ganhava. Ah, que besteira fiz! Mas quem não se arrisca não petisca, não é? Pedi demissão e fui pra a outra fábrica, que ostentava o nome O*** (processava areia monazítica). Adorei a mudança: sala com ar condicionado, e nos serviam chá quente ou gelado várias vezes ao dia. As minhas colegas, moças gentis e alegres. Na verdade, eu me sentia bem no ambiente de trabalho. Decorrido um mês e pouco, fui chamado à sala do Chefe de Pessoal da firma que, sem cerimônia, friamente me devolveu a Carteira Profissional, sem nela ter posto o carimbo da empresa, me pagou e me despediu... Simples, assim. Eu não sabia, nem me informaram que era emprego temporário. O titular retornara da licença médica, para assumir seu posto. O chão fugiu-me aos pés e as gentis funcionárias apenas me olharam de viés, e sorriso contrafeito.

Será que fiz mal em trocar o certo pelo duvidoso? Vamos pensar que um tropicão serve para darmos dois passos pra frente. Vivendo e aprendendo, tal é o lema.

Novamente, sem emprego, sem esperança, ao deus-dará, deambulei na Avenida Santo Amaro, amargo. Passei por uma banca de jornal e comprei um para recomeçar a pesquisar ofertas de emprego. Voltei à pensão de Assunta. Naquele dia, fatídico, eu e um colega de pensão ficamos sós. Primeiro, ele cismou de trocar uma camisa minha, bela e cara, por um par de sapatos; não topei; em seguida, ele me ofereceu uma lapiana em troca; recusei. Então, ele pôs a faca firme na minha garganta e me molestou. Chorei baixinho, sangrei a noite inteira... Demais para mim. De madrugada, quando as cortinas da noite se afastavam, e todos dormiam profundamente, arranjei meus trastes na mala, devagarinho e silenciosamente pulei da janela e sumi no mundo.

Lamentavelmente, não paguei à Dona Assunta. Fui para a estação Roosevelt e comprei bilhete para embarcar no trem “baiano[1]”, de volta à minha terra, nas Minas Gerais. Passei o dia na Estação, com medo de ser pego pela polícia. O trem saiu às 20 horas.

Parágrafo para Eros, deus do amor: No vagão, sentei-me ao lado de bela morena e iniciamos um bate-papo de sondagem e conhecimento. Soube que ela ia para Monte Azul. Conversa vai, conversa vem, logo mão na mão e amasso coalescente, nada além. Seus olhos fundos e ardentes pareciam despir minha alma. Então, pedi licença e fui me refrescar na plataforma do vagão, enquanto descascava e mordiscava uma laranja-baía. Era madrugada, ouvi o chefe do trem anunciar com voz sonolenta: Volta Redonda. Fim do parágrafo.

O maquinista reduziu a velocidade ao mínimo. No lusco-fusco enevoado havia um ambiente fantasmagórico, porque milhares de lâmpadas luziluziam nos gigantescos galpões que se sucediam interminavelmente. Tive um deslumbramento e pensei com meus botões: “Aqui deve haver muito emprego...”

O apelo do destino... Compulsão. Saltei do cavalo de aço para a Cidade do Aço. E outra longa história recomeça... Leitores e leitoras, o que acham que aconteceu? Convido-os a relatar, com sua sensibilidade, minhas novas aventuras.

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 E muitos anos decorreram, muita água marulhou sob a ponte. Jamais esqueci a Pensão de dona Assunta. Tive no vaivém da vida grandes problemas, e grandes vitórias, vacilos incríveis... “Por caminhos ásperos se vai aos astros”. Afirmo não ser de minha natureza e de meu caráter “fintar” ou dar prejuízo a alguém. Um homem de bem não faz papel desprezível, mesquinho. As brumas da memória sempre se abriam para lembrar-me do “cano” (malfeito) que dei à dona da Pensão, se bem que houvesse atenuante, pelo trauma que sofri. Precisava resgatar a dívida, por questão de honra. Homem maduro, e com a vida resolvida, voltei ao local do “crime”. Queria me desculpar, acertar a conta com juros e correção, todavia o progresso seguira adiante e, onde outrora existira o casarão da Pensão havia um prédio moderno, com esquadrias de alumínio fosco, vidro fumê, e vários andares. O Brooklin paulista do passado ficara no passado.

E Assunta... Onde estaria? Na mansão dos bem-aventurados, certo?

“Que pena! Não redimi o débito”.

Eis a minha confissão, minha catarse e meu remorso.

Que dona Assunta tenha me perdoado, e que Deus me perdoe.

... Ah, nunca mais comi bertalha!

Ah... e se eu seguisse para Monte Azul? com a morena de cabelos pretos? e olhos acanelados?

 

 ACERTO DE CONTAS

 

Usando da licença poética a mim concedida no conto “A pensão de dona Assunta”, vou assumir a mente, o corpo, a alma e possuir o confidente, enfim, tornar-me seu alter ego... E contar tudo, pedindo desculpas desde já, porque vou gastar muito mais do que as linhas pontuadas, quando convocado fui a continuar a saga do nosso herói. Ouçam-me narrar a minha/dele lenda pessoal.

Poderia dizer as célebres palavras: “Veni, vidi, vici.” (Vim, vi, venci.). Não se deu assim, tão fácil. Desci na estação ferroviária de Volta Redonda. Era madrugada com muita cerração e muito frio. Quando o sol brilhou no céu límpido, eu fui à cidade velha, sabendo que dois primos trabalhavam em uma sapataria que ostentava o nome Cl****, talvez em homenagem à filha que assim se chamava. Às oito e trinta ou pouco mais chegaram meus parentes, e a eles me identifiquei, solicitando informações atinentes a algum tipo de emprego. Eles nada podiam fazer por mim, entretanto o dono da sapataria, seu Geraldo, me convidou a ficar na casa dele, enquanto eu achava emprego na grande empresa que vira ao amanhecer. E, morando com eles, fiquei três meses, e salário zero. Não reclamei... A vida é dura: deboche, humilhação, exclusão, sofri, mas “por caminhos ásperos se vai aos astros”, temos que escolher o silêncio, às vezes e engolir em seco. Esse foi o meu caso, pois o interesse maior era entrar na grande empresa de luzes tremulantes na madrugada enevoada. Após o início de trabalho quase escravo, na dita loja de sapatos, consegui uma vaga na siderúrgica, mediante simples apresentação de carta-bilhete ao superintendente da firma. Digo: a humildade é o caminho da vitória: “Bem-aventurados os humildes”. O engenheiro superintendente olhou-me com ar de desdém e falou: “Vou lhe dar uma vaga de servente de fundição”. Curvei-me ao destino mais uma vez... Esse local, fundição, pode ser considerado antessala do inferno, porque é fumaça, fogo e gás por todos os lados. Comecei a trabalhar com as ferramentas que me deram: um par de luvas, uma máscara contra poeira e uma pá. Fui mandado ao subterrâneo, onde deveria repor areia na correia transportadora. Notei que a areia era quase incandescente, decorrente da desmoldação de peças fundidas, mas tarefa é tarefa, eu aceitei a provação. Quase fui engolido por um eletroímã, porque elevei a pá ao alto e ela foi sugada. Não era meu tempo... No dia seguinte, mandaram-me fazer limpeza no telhado do altíssimo galpão industrial. Meu Deus! Descobri que tinha medo de altura, doença chamada acrofobia. Subi no telhado de rastos e voltei do mesmo modo, assim que terminei o famigerado serviço de limpeza da chaminé do forno Cubilô[2]. Eu sofri desesperadamente: tonturas, escorregões, náuseas. Molhei as calças. Com certeza, fiz meu trabalho deitado no telhado, nem sei por que não desmaiei. No outro dia, dirigi-me à chefia e mostrei que trazia boa bagagem intelectual. Fui promovido a Anotador. Daí em diante, subi na hierarquia da empresa e fui ao pináculo; e, nas alturas, ajudei muita gente (inclusive familiares). Eventualmente, tomava um copo de café no bar Favorito, onde o garçom atencioso, de nome Etto** me atendia. Na Companhia, recebi homenagens, honrarias, diplomas e comendas. Tinha salário alto e fiz curso de metalurgia e, mais tarde, o curso de Direito. Enfim, chovia na minha horta. Na matemática espiritual, meus débitos e créditos quase se equilibraram, mas meu tempo terreno chegou ao fim de modo abrupto; um evento trágico se deu. Fui convidado a visitar o alto-forno da empresa e, desavisado e imprudente, subi ao topo dele. Ora, todos sabem, eu sabia também, que no topo da chaminé eventualmente ocorriam emanações excessivas do gás monóxido de carbono (CO), altamente venenoso, tanto assim que era proibido galgar aquele lugar sem as precauções devidas. Paguei caro pela minha estupidez e aconteceu: desmaiei... Às pressas, tentaram me salvar fazendo respiração boca a boca e massagens no peito. Apesar dos esforços dos paramédicos, foi tudo em vão. O que acontecera comigo? De repente, ouvi, sem entender o porquê das gritarias, os pedidos de socorro, a maca e a ambulância. Com sirenes ligadas e a toda velocidade, eu fui levado ao hospital. Os enfermeiros gritavam: “CTI, desfibrilador, oxigênio”; médicos diziam: “Pressão caindo, batimento zero”; e eu ouvia tudo, bem nítido, mas sem tomar qualquer decisão, achando não ser parte do problema. Fui sugado por um cone de luz, estava de volta à Pátria espiritual, em condições deploráveis, inesperadas e cedo demais para a minha partida. Vi-me assim do “outro lado”: a perturbação e o ignoto me aterravam, seguiu-se vontade enorme de dormir para sempre. Pareceu-me ouvir choros e lamentos de entes queridos... Relembrei todos os fatos da minha vida. Revi amigos de infância, da juventude e parentes. Meu espanto era indescritível. Afinal, onde estava? Era o mundo das sombras... Deparei-me com um vulto translúcido vindo em minha direção. Um avantesma a se desvelar, e se identificar e me falar com doçura: “Lembra-se de mim? Eu sou a dona da pensão: Assunta”. Tremi, porque lhe devia uma quantia substancial ao fugir da pensão. Sofri eterna lembrança e vergonha. Ajoelhei-me e pedi perdão pelo ato, pois não havia como resgatá-lo. Assunta me confortou e me disse perdoar, porque imaginava que algo grave se passara, ao notar as manchas de sangue coagulado na minha cama. Ela deduzira que eu fora vítima de violência, na véspera da fuga. “O passado ao passado” disse-me. “Agora, você está limpo daquela mácula. É momento de paz”. Minha ferida moral e espiritual cicatrizou, e pela mão de Assunta, saí do umbral para o campo de luz, com bons espíritos a me guiarem até a segunda vinda...

 

 RENASCIMENTO

 

— Aonde você vai?

— Para minha casa...

— Agora esta é sua casa.

— Não reconheço este lugar.

— Ok, deixe-me explicar: Você deixou na Terra o corpo material, agora é apenas alma ou espírito, está noutro plano, noutra dimensão.

— Não entendo...

— Irmão, você morreu, foi envenenado com gás carbônico. Esqueceu tudo, não é? Vou lhe contar, tintim por tintim, seu rito de passagem...

A alma até então desorientada tomou ciência da tragédia terrena.

— Estou ciente, agora, o que me espera?

— Como seu desencarne foi extemporâneo, fora da hora combinada, você será orientado por mestres e voltará pra cumprir a etapa final de sua estadia na Terra, é como se diz na contabilidade da Terra: “restos a pagar”.

— Mas se eu não quiser cumprir o resto do programa...

— Não é decisão sua, o renascimento é obrigatório. Vou lhe apresentar seu guia espiritual.

Feita a apresentação, o mestre disse-lhe:

— Sua transição foi rápida e assustadora, sei que ainda não assimilou seu novo estado, está confuso, mas compreenda: você está do outro lado, no Plano espiritual. Noutra dimensão. Quero lhe ensinar alguma coisa relativa à sua volta que não será dolorosa, mas necessária para sua evolução; há retorno excepcional e voluntário que se dá quando se deseja fazer o bem e se tem desenvolvimento para tanto, porém a maioria dos casos de renascimento é restrita, e apenas para cumprir um prazo da vida anterior que acabou repentinamente. O retorno de misericórdia é quando o Pai concede um bônus para o espírito dar amor incondicional aos viventes...

Eu interrompi o mestre e pedi:

— Posso ter uma visão do que me espera no retorno?

Como no descerrar de uma cortina, o Guia me mostrou em filme de terror tudo que me esperava na nova vida. Tremi, era demais para mim.

— Não quero voltar em nenhuma hipótese! — exclamei.

— O retorno é mandatório, disse o Mestre.

— Meu livre-arbítrio há que ser levado em conta: quero obtemperar, solicito uma audiência ao Divino Mestre[3].

— O Senhor de Luz, Mestre dos mestres, não vai quebrar a corrente das idas e vindas, pois seria interromper o progresso espiritual. Você há que se salvar e crescer pelos próprios méritos...

— Concordo plenamente com esse argumento, porém o Criador é divina Essência, onipotente, onisciente, onipresente, sumamente bom e justo. Ele é compassivo e compreenderá e atenderá o meu desejo. Lembro-me de que nada nesta dimensão segue os parâmetros terráqueos, nenhuma medida de lá, espiritual ou material, se aplica aqui; “Pedi, e dar-se-vos-á”: eu imploro a divina graça.

Ouviu-se uma voz:

“Assim seja feito, meu filho. Você quer ficar aqui? Fique! Esta é minha lei: a Lei da Graça, e acabou seu eterno devir”.

 

Epílogo
 

Esta trilogia foi feita sob a ótica do realismo fantástico. Algo aconteceu no plano material com nosso personagem principal; algo aconteceu com ele no plano espiritual, pressuposto. É, pois, uma visão muito especial e peculiar sobre o plano/ideia de salvação vis-à-vis a de progresso.

Por causa de problemas vividos e sofridos pelo herói no plano terráqueo, ele não se conformou com a ideia do eterno retorno, com a problemática de vidas sucessivas, para, enfim, alcançar a paz, seja pela reencarnação, ou palingenesia, ou pela metempsicose. Daí, ele sugeriu aos mentores uma solução: ficar com o Pai, onde há muitas moradas. Para tanto, apelou para a graça de Deus[4]. Ele é amor, pode tudo, pode fazer acontecer, isto é, conceder graça ao espírito ou alma, sem se ater a protocolos estabelecidos por nós, humanos frágeis que somos e simples poeira cósmica, à luz do universo.

Não chorem por mim, não tenham pena de mim, não me invejem: tudo aconteceu como devia ter acontecido...  Maktub!

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 [1] A partir dos anos 1950 existiu um trem direto: São Paulo-Salvador, que passava por Belo Horizonte, mas havia pelo menos uma troca de comboios por causa da quebra da bitola da Central, na região de Belo Horizonte. Era chamado "trem baiano", pois era utilizado por aventureiros e por passageiros que iam principalmente de São Paulo ao Norte de Minas e Bahia e vice-versa. Foram os rápidos N-1e N-2.

[2] O forno Cubilô ou forno de cúpula é um equipamento de fusão empregado para a produção de ferros fundidos, por meio da refusão de ferro-gusa, mais coque, dolomita, manganês e calcário. 

[3] “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.” (Rm10:13).

[4] “É pela graça que vós sereis salvos.” (Efésios 2:8)


COMPANHEIRO

 

Esta história não tem a ver com certa facção política que tem o slogan: “A luta continua, companheiro!” Eu quero escrever sobre meu gato, meu companheiro de todas as horas, lá no sítio Casa Branca, em Juiz de Fora, onde eu vivi algum tempo.

Assim que comprei o sítio, passei algum tempo nele, por dois motivos: primeiro, queria descansar minha cabeça, pois havia me aposentado, havia pouco, de uma grande empresa, onde trabalhara por 35 anos; e, também, queria fugir da agitação da cidade grande, no caso, o Rio. Em segundo lugar, eu tinha na cachola a ideia de escrever um livrinho sobre estranho caso de paranormalidade que se dera em minha família. Assim, deixei a família nuclear na cidade do Rio e fui morar sozinho na roça, ou no campo. Eu havia dito aos meus amigos de trabalho que agora seria lavrador. Como me enganei...

Eu não me lembro como o gato foi parar na minha casa. Penso que nosso caseiro o trouxe na mudança; talvez minha irmã o tenha dado a mim, não sei. Certo ele era acinzentado e, com certeza, sem pedigree. Ele era muito bravo, e por qualquer coisa arrufava para mim renhau mau! Cheguei a pensar ser ele gato-do--mato. Com o passar do tempo ele acostumou-se comigo e não me deixava só, daí chamei-o COMPANHEIRO.

Quando comecei a escrever meu livro, ao qual dei o nome Possessão (está esgotado), o gato subia na mesa, deitava-se de costas para mim e permanecia longo tempo nessa pose. Quando, na cabecinha dele, achava que eu não ia parar de escrever, ele se virava para mim e docemente, suavemente batia a patinha em minha caneta, até que eu, chateado com as interrupções do felino, me levantava e dizia: “Chega, você quer passear!” Ele também se levantava alegremente e pulava para o chão. Nós saíamos ao terreiro, passávamos pelo curral e subíamos ao pasto nas trilhas de capim brachiara decumbens. O passeio era longo, em geral eu me dirigia à mina d’água potável e, após muito caminhar, o gato começava: miau, miau, miau. Eu sabia, ele queria colo. E, de fato, eu o pegava e ele se aninhava em mim. Enfim, éramos felizes.

Um dia ele apareceu arrepiado e vomitando muito, pensei que estava envenenado. O vizinho tinha parte com o demo e para ele matar um gato não era problema. Levei o gato ao veterinário de Benfica, que constatou envenenamento com raticida, e prescreveu medicamentos para cortar o mal, o que aconteceu. Certa feita, eu recebi a visita de uma família que tinha um garoto, desses cheios de manhas e vontades. O garoto cismou de pegar o gato. Ao que eu disse: “Não pega”! Ele insistiu, mas quando ele pegou Companheiro e o levou ao peito, recebeu várias unhadas e o largou de pronto. “Não te falei?” — disse-lhe.

E a vida seguia tranquila eu, meu gato, meu cachorro meus gansos e minhas galinhas d’angola. Eita vida boa! Porém meu vizinho não se dera por vencido e, como o veneno não funcionara, a contento, ele atirou no gato, felizmente a bala só raspou na pele.

Companheiro tinha gosto refinado: ele adorava ouvir música clássica, principalmente a “Protofonia”, do maestro Carlos Gomes. Quando eu punha o long-play na vitrola, ele ficava parado, extasiado, em frente ao aparelho, até a música acabar. Porém, se eu pusesse uma música de carnaval, ele saía correndo para o terreiro. Outro grupo que ele não suportava era o de Folia de Reis. Em janeiro, algumas trupes passavam pelo sítio, nessa época, Companheiro desaparecia.

O gato tinha ciúmes de mim: se um visitante chegava, ele ficava sempre ao meu lado, me vigiando. Aonde eu ia, ele ia também, e ai de quem tentasse me afagar!

Eu nunca deixei qualquer animal ficar à noite dentro de casa. À noitinha, punha todos pra fora: gato, cachorro, galinhas etc.

Eu comprava carne de segunda para alimentar meus pets. No final da semana ia ao açougue, em Benfica, e comprava quantidade suficiente de carne para a semana. Chegava a casa, tratava dos bichos e punha a carne na geladeira.

Minha casa não era grande: dois quartos, uma sala, cozinha, despensa e duas varandas. Como já o disse, meus animais ficavam de fora da casa à noite. De madrugada, pelas cinco da manhã, do lado de fora da janela do quarto onde eu dormia, começava o roçar do bichano no peitoril. Ele ia de uma ponta à outra e sempre agitando o rabo e com ele batendo na janela. Estava me avisando pra levantar-me. O que me encucava era que eu, por ter medo de ladrões, dormia cada dia num lugar diferente, mas o gato sempre sabia onde eu estava dormindo. Eu me levantava, fazia as abluções de praxe e, a seguir, abria a porta da cozinha. Quem entrava primeiro? Companheiro, o qual ia me enredando, dando voltas em torno de mim e me dirigindo para a geladeira. Ele sabia onde eu guardava o alimento. Os bichos sabem muito mais do que pensamos... Eu tratava dele e do cachorro com a carne e, em seguida, dava milho às galinhas, gansos e patos.

Houve outra investida para matar meu companheiro: jogaram água fervente nele, que escapou por pouco e veio miando dolorosamente para casa.

Tratei-o como pude, mas ele perdeu muitos pelos. Tomei uma decisão difícil para mim: resolvi doar Companheiro à minha tia Niniva, que morava e ainda mora em Benfica. Mas como levá-lo? Não foi fácil, todavia consegui laçá-lo e enfiá-lo num saco de aniagem; e ele riscando fósforos. Com o coração partido, peguei carona numa fubica e levei-o a Benfica. São dezesseis quilômetros de distância, em retas, curvas e trânsito intenso.

Pensem bem! São quilômetros de asfalto, barulhos, buzinas e cheiros diversos, inclusive passando por uma fazenda com seus estercos malcheirosos.

No meu entender, Companheiro saíra da minha vida para sempre. Com surpresa total e muita emoção e — por que não dizer? — alegria imensa, no dia seguinte, eu ouvi o roçagar na janela do meu quarto: era o Companheiro que voltara. Como pode ser? Como ele, posto num saco, pode relembrar os meandros do caminho? Dei-lhe comida e afirmei: “Você voltou, ganhou o direito de viver aqui, com meu eterno carinho”.

Esta história não teve um fim feliz, Companheiro foi sacrificado em ritual satânico, pelo tenebroso vizinho dono do sítio Xoroquê.

Desgostoso, vendi meu sítio.


                AS CECÍLIAS, SANTA CECÍLIA E EU

                                                                                                     

– Busca rompante!

Com esta fala bizarra eu e meus irmãos corríamos em direção à janela para ver o trem de ferro passar. Eu tinha seis para sete anos e já sabia ler um pouco. Estava sendo alfabetizado na escola de dona Cecília Nogueira, cursando o terceiro ano primário. A vida descortinava-se para mim. Eu olhava o trem como se fosse uma cobra gigante. Talvez carregasse mais de setenta vagões, na verdade não os contava, mas lia as letras garrafais em cada vagão: CASA DE PEDRA. Eu dava asas ao pensamento e imaginava/lucubrava “como seria uma casa de pedra”.

Informo que mudáramos recentemente para um sítio de nome Chalé, no arraial de Chapéu D’Uvas, perto da ferrovia, talvez a quinhentos metros ou menos. Vindos da roça, éramos capiaus mesmo, sem dúvida: tabareis. Nunca havíamos visto um trem de ferro, só conhecíamos carro de bois, chinchinante morro acima: Tá pesaado, pesaado... Daí, “busca rompante” nos dava o trem.

E O TEMPO PASSOU... 

E ao correr da minha vida, quantas Cecílias eu conheci? 

Minha primeira namoradinha: Cecília.

Minha tia, Cecília, me dava palmadas.

Minha priminha, Cecília, melhor Cicilinha, doce amiga;

Euterpe[1] de Santa Cecília, de meu tio Agostinho Aquino de Almeida.

 Aconteceu que nos vaivéns da vida, mudei para Volta Redonda, onde há uma grande siderúrgica: a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Descobri que aqueles vagões, da minha infância, vinham de Lafaiete, para ser mais preciso, de Casa de Pedra, destino CSN; todos carregados de minério de ferro, para os altos-fornos da Companhia.

Fui admitido na empresa em janeiro de 1955 (aos 21 anos) e saí encanecido para aposentar-me, em outubro de 1987. Uma vida no emprego da minha vida, dedicada à empresa. Meu único trabalho foi na amada CSN, onde fiz carreira de servente a presidente de uma de suas subsidiárias: Emissão e Planejamento de Seguros — EPLAN. Glória a Deus, que me deu cargo tão importante. Mas eu falava de Cecília... Pois é!

Em Volta Redonda, o padroeiro da cidade é Santo Antônio, seu templo fica no bairro Niterói, porém a santa protetora da CSN e de seus trabalhadores é Santa Cecília[2]. Sua igreja fica num outeiro, encarando a Vila Santa Cecília e as instalações industriais da Companhia, protegendo todos nós, bem como a Empresa.

Sob a égide de Santa Cecília, éramos felizes e sabíamos, e a CSN era nossa segunda mãe.

Sou religioso, quando morei no bairro Bela Vista, assisti a muitas missas na Igreja de Santa Cecília, oficiadas alternadamente pelos padres Bernardo Thus, Arnaldo, Paulo Welker, Ernesto e outros, ocultos nas brumas da memória. Meus filhos tomaram a primeira comunhão na Igreja de Santa Cecília, depois de instruídos pela catequista, amiga Consuelo. Tempo, tempo, tempo... saudade, saudade. Atrás da Igreja, fica o Teatro Santa Cecília (1955), o Centro Social Santa Cecília, o salão de festas... Santa Cecília... e a Escola Santa Cecília. Existiu também o Grupo Escolar Fazenda Santa Cecília em 1966. A CSN Construiu e patrocinou o Conservatório de Música Santa Cecília desde 1976.

Outrora, havia a Fábrica de Macarrão Santa Cecília, perto do Posto JK. Não menos importante: o Cinema Santa Cecília, (Poeirinha), sito na Rua 33, esquina com a Rua 40 e fechado em novembro de 1976. No local, nos dias de hoje, erguem-se as torres I, II, III, e IV. Ainda temos o Clube Náutico e Recreativo Santa Cecília. E, na Volta Redonda antiga, cito o Mercado Santa Cecília, descaracterizado totalmente. Existiu, também, nos idos de 1950 o Santa Cecília F. C.

Paro para respirar.

Não posso, nem quero esquecer a fazenda Santa Cecília (muito importante no Ciclo do Café), desapropriada para que, nas suas terras, fosse construída a maior Usina Siderúrgica da América Latina: a CSN. O nome da fazenda, provavelmente é homenagem a Cecília de Moraes Monteiro de Barros (devota de Santa Cecília), e mulher do comendador Lucas Antônio Monteiro de Barros[3].

Registro que uma Sociedade de Laticínios Santa Cecília Ltda. foi criada em 1925, funcionando no local onde existia um antigo engenho de açúcar em 1903 (Bairro Jardim Paraíba). Hoje, no local da antiga construção, só restou a chaminé, que foi também parte de uma olaria. Onde estará o time de futebol: Grêmio de Santa Cecília?

Por fim, e não menos importante, registramos o Parque Natural Municipal Fazenda Santa Cecília do Ingá (antiga Fazenda Santa Cecília do Ingá), adquirido, em 1955, pela Prefeitura de Volta Redonda.

A família siderúrgica passeava na Fazenda Santa Cecília e ia até à cascata refrescar em dias caniculares.

13 de agosto de 1966 — inaugurado no final da Rua 35 (Rua ao lado da ETPC) o Grupo Escolar Fazenda Santa Cecília, hoje extinto. O 1o prédio na Vila chamou-se Santa Cecília. Esta devoção acabou após a privatização da CSN. Tempos “bicudos” vieram: o dono da CSN comprou a empresa, ganhou uma cidade e fechou com arame farpado a estrada de acesso à cachoeira. Perguntar não ofende: Por que a CSN virou as costas para a cidade?

O Hospital Santa Cecília (HSC), mantido pela CSN, cuidava de todos os empregados e seus dependentes, gratuitamente. Bons tempos, maravilhosos tempos que se foram. Após a privatização, o HSC foi rebatizado: Hospital da Companhia Siderúrgica Nacional (HSN); depois, Hospital Vita. No imbróglio CSNxVita, chegou-se a cogitar o nome Hospital das Clínicas Santa Cecília, contudo prevaleceu a razão social Hospital das Clínicas de Volta Redonda (HC) e não mais faz misericórdia.

Definhou, esvaiu a missão social da Empresa CSN. Tudo é cobrado. Acabou-se o que era doce... Não há bem que sempre dure.

Santa Cecília é soberana do povo de Volta Redonda. Certo?

Ao lado do pronto atendimento do Hospital na rua 162, havia o ícone de Santa Cecília, em um oratório, eu tinha por ele grande respeito e devoção.

Há dias demoliram a ermida. Nela, o povo fazia preces, acendia velas e pedia graça: “Pai, Filho, Espírito Santo, ajudai-me!”. Crentes de todas as denominações religiosas, em momentos de grande desespero, rezavam/oravam à Santa Cecília, pedindo mercê. Da janela do meu quarto dava para ver a edícula da Santa. Certa feita, a esposa de um amigo rezou lá, pedindo um milagre para o marido, vítima de câncer. O milagre não se deu. Nem sempre merecemos, ou, talvez, seja hora de ir para a pátria espiritual. Só Deus sabe...

De repente, cadê o oratório? Parece que findou o local de exprimir nossa religiosidade e espiritualidade.

Só restou um buraco onde estava o pequeno altar. — Uma ferida no muro de pedra, massa quebrada e pó.

E sumiu o ícone da Santa. Para onde? Para quê? Por quê? Quem foi?

Santa Cecília, ainda que desaparecida ou perdida, esteve, está e estará sempre presente em minha vida...

Meus filhos nasceram no HSC, e perdem-se na noite dos tempos as vezes que nele consultei, bem como meus familiares.

Hosanas! Salve! Salve! Glória a Deus! Santa Cecília, de novo padroeira do Hospital CSN. Hoje, 30 de maio de 2020, tive imensa alegria ao ler na parede do Pronto Atendimento na rua 162: Hospital Santa Cecília (HSC). O mundo deu muitas voltas... O HSC voltou.

Nota: Assunção formal do Hospital (HSC) 1/6/2020.

 

Cecília, empresta-me tua doce melodia:

Desejo converter todos os corações a Jesus!

Gostaria também de imolar minha vida,

ofertando a Jesus meus prantos e meu sangue...

Dá-me saborear, nesta terra estrangeira,

o perfeito abandono, doce fruto do amor.

Dá-me, santa querida, a graça de voar

para longe desta terra em revoada sem volta!

 

28 de abril de 1894 

(in Obras completas de Santa Teresa do Menino Jesus)

 

 Longa vida ao Hospital Santa Cecília!

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[1] Deusa da música.

[2] Consagrada em 22/11/1945.

[3] Roberto Guião de Souza Lima, in Volta Redonda do café e do leite140 anos de história, 2004, p. 32.

 

UM PORQUINHO FELIZ... ATÉ CERTO PONTO

 

Nasci numa tarde chuvosa e úmida, na fazenda São Mateus. Minha mãe bufava, ou rouquejava, e nós, saindo um a um, rolando ao chão. Finalmente, éramos oito irmãos e quatro irmãs, ao todo doze, qué-qué-qué. Que ninhada! Para minha desdita, fui o filhotinho mais fraquinho. Os outros logo, logo se desvencilharam dos invólucros protetores, arrebentaram o cordão umbilical e mamavam nas tetas recheadas de colostro: hum-hum-hum! Demorei um pouco a me libertar e corri com perninhas bambas para sugar leite quentinho, mas... eu fui empurrado, pisado e expulso. Escorreguei por cima dos outros, fui parar longe. Voltei, tentei, tentei e consegui, mas quase nada sobrara para mim. Ah, que gostoso o leite da mamãe! Depois, veio a noite, fiquei no cantinho mais frio, entre as pernas de mamãe, e meus irmãos, aninhados na sua quente barriga. Em poucos dias, todos cresceram, menos eu, miúdo, excluído. Aí, apareceu a Cinco Dedos — Maria. Magra, bela. Senti que era boa de coração. Ela sorriu para mim, curvou-se sobre a cerca que dividia nosso mundo, me pegou no colo, criticou minha fraqueza e elogiou meu focinho numa língua desconhecida, que entendi pela doçura:

— Coitadinho, tão pequenino!

E me arrastou para longe daquele lugar, me aquecendo, murmurando palavras meigas: “Mãê, eu vou cuidar dele, me dá um leite aí, mãe!”

A mãe dela trouxe uma mamadeira de leite igual à teta de minha mãe “porca”. Estava quentinho: é-um-é um-é-um! Meu jeito de mostrar satisfação. Mamei tudo.

Tempo vai, tempo vem... Chuva miúda não mata ninguém... Dias e noites, muitas luas se passaram. Aprendi a linguagem dos homens. Ficava sempre ao lado de minha dona, que me adotara para tudo: no trabalho, na folga, nas brincadeiras, até na hora de dormir. No princípio, eu dormia ao seu lado, mais tarde, ficava aos seus pés na mesma cama e, quando engordara, roncava num colchão de palhas de milho, no chão e ao lado de sua cama.

Eu comia fubá molhado, insetos, cascas de frutas, milho moído e, principalmente, muito leite na gamela rachada. Que bom! Estranhava que minha dona cobrisse a pele com uma segunda pele a que chamava vestido. Não me dava bem com aquilo; era estranho: meu pelo liso, amarelinho, com pintas brancas, me bastavam. Minha dona costumava me dar soro de queijo no coité. Gostava de repousar meu queixo na perna dela, e também das cócegas no meu pescoço e barriga. Vez por outra, dava fugida ao local dos meus irmãos, onde me chafurdava gostosamente no lamaçal. Minha amiga me pegava e me chamava “Porco”. Ela não entendia que sentia muito calor e que precisava da lama pra me refrescar. Ah, que delícia quando ela me jogava água!

Maria me imitava, grunhia e corríamos pelos quartos. Eu dava oinc-oinc-oinc, e ela gritando: ai-ai-ai, a onça vai te pegar! E, me pegando pelas pernas, me levantava, aconchegando-me ao colo. Vida boa... Ficava feliz ao ouvi-la tocar viola.

Depois de brincar a valer, eu ia me deitar numa poça de barro, à beira do córrego, no jabuticabal. Maria detestava meu comportamento de me enlamear. Afinal, era um dos animais mais inteligentes: entendia tudo o que diziam. Quando deitava na lama fresquinha, ela vinha correndo e gritava: “Porco!” Apelido chato, desagradável, sim. Era asseado e precisava de um lugar para fazer meu cocô. Maria, então, me levava para o banheiro, tirava os bichos de junto a minhas bifurcadas unhas, e voltávamos a correr, a brincar pelo terreiro e pomar. No curral, certa feita, uma vaca me deu uma patada que resvalou pelo meu rabo e cortou um pedacinho. Perdi o lacinho do rabo e fiquei cotoco. Agora, era Lé Cotoco. Uma vez, fui mexer numa corda que não era corda: era cobra. Felizmente, ela picou a minha unha e nada sofri. Achava as minhocas saborosas, eu comia de tudo: cascas, frutos, raízes, cana, vermes, restos de comida, capim. Que pena, minha dona não podia fuçar como eu! Seu nariz era fraco.

Um dia vieram dois homens mal encarados, me seguraram, abriram um canivete e me cortaram lá atrás. Que dor horrível, desesperadora! Guinchei, lutei, chorei, mas me imobilizaram com um joelho posto na minha cara, enquanto o ajudante arrancava minhas bolinhas e as jogava para os cachorros.

Não gostava de ser chamado “Porco”, parecia demais com os humanos. Minha cara era diferente, mais bonita. Eu me espojava na lama porque sentia calor, precisava me refrescar; em compensação, minha dona tinha os pés gelados e me chamava para esquentá-los, enquanto costurava. Para isso, servia. Ela me amava, sabia disso.

Crescera, estava pesado, engordara a olhos vistos, sempre atendendo ao chamado de “meu Lé”. Tinha dificuldade em subir a rampa da cozinha. O pai de Maria disse:

— É hora de mandá-lo pro açougue, no ponto.

De repente, ouvi o chororocar do macuco na mata: fuóó. Meu coração disparou.

Maria me chamou e eu atendi. Ajudaram-me a subir a escada de pedra. Meu peso beirava dezoito arrobas... Atravessei o corredor até a entrada principal da casa. Ouvi o chio do carro de bois e o aboio do carreiro: ôa- ôa-ôa ô-ôa, e, depois, o silêncio.

O carro de bois, recostado no último degrau de pedra, esperava por mim. Maria entrou nele para me inspirar confiança. Acompanhei-a... Ela pulou da esteira para o cabeçalho, atrás de mim, o candeeiro fechou a traseira do carro, e fiquei preso e só.

— Vamo, eh, eixe, ei! — incitou o carreiro, e os bois, em sincronia, partiram da fazenda para o açougue.

Eu ignorava o destino cruel reservado para mim: oinc-oinc... oinc.

No brejo, a saracura se acusava: quebrei três potes e um coco e um coco. Estava piando por mim.

 

  

A MISSÃO

 

Dizem que a gente vem à Terra com uma missão. Se tive uma missão, Deus se esqueceu de me entregar o manual de instruções. Então, bati cabeça aqui e ali a vida inteira e, no fim, nem sei se cumpri ou não cumpri meu compromisso. Como dizem os sábios, quem não sabe aonde vai, qualquer caminho serve, e eu cheguei lá... Como? Não sei! Mas, nos desencontros da vida, dez mil máscaras eu usei, e só Deus sabe o preço que por elas eu paguei. Eu posso dizer que vivi segundo o caminho estreito (o da salvação). Fui criado sob a égide da Igreja Católica, no tempo que a missa era celebrada em latim. Eu me ajoelhava, me levantava e tornava a me ajoelhar; batia no peito dizendo e ouvindo mea culpa, mea maxima culpa, sem saber de que era culpado. O sermão do padre, em geral, martelava os ateus, os judeus, os espíritas e os maçons. Depois, isso acabou e não mais se fala nos heréticos... Fui educado em colégio metodista, com muita honra. Frequentei vários templos: Metodista, Batista, Luterano, Presbiteriano, Assembleia de Deus, Testemunhas de Jeová, Adventistas do Sétimo Dia e outros. Li o Livro dos Espíritos (de Kardec), do princípio ao fim, nele há questões e respostas muito pertinentes; tive noções da Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias (Mórmons); estudei Logosofia; frequentei terreiros e sessões de Umbanda. Concluí que todas as denominações religiosas/filosóficas querem o meu bem. Hoje, sou católico não praticante. Também continuo sem saber o que vim fazer aqui (falei que não me deram instruções). Dizem os espíritas que estamos na terra de expiação; e, segundo os católicos, no vale de lágrimas. Sou fã do pensador Osho. Li muito sobre Jesus, e sobre seu oponente: Lúcifer. Minha vida foi pautada pela ética, pelo extremo amor à família, e à empresa onde trabalhei 35 anos. Cometi erros querendo acertar; fiz besteiras, sabendo que eram besteiras mesmo. Arrependo-me... se pudesse voltar atrás, faria diferente determinadas ações. Posso afirmar que perdi o leme do barco da vida, ou o barco não tinha leme, então fiquei ao sabor das ondas. Vou navegando sem saber minha origem, o porquê de tanto navegar e se irei chegar a um porto seguro. O mundo é uma bola... possivelmente, voltarei ao porto de onde parti, mais sábio, talvez, ou mais estúpido, quem sabe? Invejo os que tudo sabem e de nada duvidam. Eu sou uma interrogação ambulante... Sou viajante sem rumo na estrada eterna, num eterno devir. Sou passageiro, timoneiro, motor e barco. Minha única opção: navegar e navegar, pois atrás vêm outros nautas e outras praias. Quando eu for pro outro lado, farei uma petição a Deus para conhecer minha folha corrida... e minha missão. Se tiver mais débitos do que créditos... se vou encarar um retorno... e não quero retornar. Há obstáculos imensos a superar; na verdade, durante o fluir da vida só se tem momentos de extrema felicidade, no mais é matar um leão por dia. A felicidade se constitui de marcos na longa e sinuosa estrada da vida. Eu sou luz e sombra / estrela cadente / um ser dormente, / SILENTE.

E a minha missão... deixa pra lá...

 

O SENHOR SEBASTIÃO P***

 

“Eu sou eu e minha circunstância, e

se não salvo a ela, não me salvo a mim.”

José Ortega y Gasset

 

Jamais esquecerei este nome... Sebastião P***

No meu primeiro dia de serviço, na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), fui apresentado a Sebastião P***, que seria meu feitor, no Departamento de Fundição (DFU), da CSN.

Isto mesmo, verdade pura e nua, eu fora admitido como servente, no pior lugar da CSN, o DFU. Hoje, afirmo, sem possibilidade de errar, que o departamento era a antessala do inferno.

O feitor, Sebastião P***, de início, não simpatizou comigo: não me cumprimentou, não perguntou meu nome e não me disse quem ele era. Deu-me uma vassoura e uma pá e mandou-me limpar o subsolo da fundição. Orientado por colegas, desci as escadas que levavam ao subsolo. Lá estavam as correias transportadoras levando areia incandescente, que caía das grelhas das recém-desmoldadas peças. A areia trazia junto consigo pedaços de ferro fundido e escória, que brilhavam como estrelas no firmamento. Estavam quase em estado de fusão. Eu usava máscara contra poeira, que era tanta como o fog de Londres. Um colega de trabalho não enxergava o outro a menos de um metro de distância. O serviço era brutal, muito cansativo, em minutos estávamos cobertos de suor. Imediatamente nossos rostos ficavam escuros, com o carvão em pó que vinha das grelhas. Éramos protegidos por máscara, que filtrava aquela poluição: a cerração negra. No final das correias, um ímã captava os resquícios de ferro, e a areia subia por sucessivas correias para resfriamento e reutilização. Meu Deus! Quem diria que um ginasiano como eu era, e granberyense do “papo amarelo”, estivesse no degrau mais ínfimo de uma empresa: abaixo de servente, só o chão. Minha vida começou assim mesmo: dureza e frieza, quiçá antipatia do chefe. Depois de algumas horas de trabalho, éramos permitidos sair do subterrâneo para lavar o rosto e tomar água. Para mim, para minha decepção, Sebastião era “carne de pescoço”,uma falha de somenos importância, e o trabalhador era punido com um, dois ou mais dias de gancho ou de suspensão. Além de perder o dia, perdia o repouso semanal remunerado, sigla RR, anotado em nosso cartão de ponto. Quando retirávamos a máscara, a única parte branca de nosso rosto era o nariz, que ela protegia. Mesmo assim, ao assoarmos, praticamente saía um tijolinho de carvão coque das nossas fossas nasais. E muitos de meus dias foram assim: Reposição de areia nas correias, limpeza de banheiros, e varrição das áreas comuns, entre outros serviços mais leves. Certa feita, meu feitor mandou-me encher caçambas com ferro-gusa e carvão para uso nos fornos Cubilô, Revérbero, bem como para o forno elétrico. Pesada tarefa. Eis que, ao dar uma passada, ela derriçou sobre o coque e torci o corpo, e tomei um jeito na coluna. Passei três noites sem dormir e sentia dores incríveis, até no pensar em me virar na cama. No dia seguinte, havia que trabalhar, sem apelação, com dor ou sem dor. Eu tomava Melhoral para amenizar a dor e seguia para o trabalho. Ai de quem faltasse! Conversei com um amigo, que trabalhava na sapataria Clélia, na Av. Amaral Peixoto, em nossa Volta Redonda (eu, antes de fichar na CSN, fora balconista na Sapataria Clélia. Meu amigo aconselhou-me procurar um curimbamba próximo à “Coreia” (zona do baixo meretrício) da cidade. Fui procurar o indigitado xamã e, pasmem, ele me curou em três dias, e com três benzeduras. Sãozinho, passei a acreditar piamente nas rezas de curandeiro. Na verdade, eu não aguentaria continuar trabalhando com tantas dores. Lembro-me de que a reza era mais ou menos assim: “Que que eu cozo?”  perguntava o benzedor. Eu respondia: “Carne quebrada, osso rendido, nervo torto”. E ele atravessava com uma linha um pedaço de pano. A benzedura durou três dias, e curado fiquei.

Sebastião P*** continuava me dando as tarefas mais difíceis, no fundo ele queria e conseguiu me humilhar. Julinho, meu amigo e companheiro, me protegia dele, executando algumas tarefas para mim.

Os dias foram correndo, apesar de as horas e minutos serem intermináveis. As luvas protetoras começaram a me produzir calos. Um dia, do lado de fora do prédio, eu e um colega paramos instantes de varrer a calçada, e ele saiu com essa: “Companheiro! a CSN é nossa segunda mãe”. Pus-me a rir, mas ele havia proferido grande verdade A CSN foi nossa mãe, como se verá depois comigo. Meu sofrimento estava no auge, e Sebastião P*** deu-me uma tarefa impossível para eu executá-la: mandou-me limpar as chaminés dos fornos elétrico, revérbero e Cubilô, no topo do prédio, na outra vertente/aguada do pavilhão. Aí descobri que sofria de acrofobia. Havia que subir do lado esquerdo, dobrar na cimeira e descer até às chaminés. Não consegui fazer tal comedimento. O mundo rodava, eu olhava pelos buracos do telhado, e a altura me puxava para baixo. Fim da linha, para mim. A duras penas, rastejei de volta e reentrei na janela. Decidi mudar de função ou pedir demissão. Fui ao banheiro, lavei meu rosto, sacudi o pó da calça e pedi audiência ao chefe da Secretaria: Leandro Carlos de Oliveira. Expus a ele minha escolaridade de ginasiano e pedi que me arranjasse um lugar melhor. Ele se sensibilizou e emocionou com minha solicitação. Imediatamente falou com o subchefe da fundição, Eng. José Bezerra Paraguay, que, após consultar o quadro de pessoal, mudou-me a categoria de Servente para Anotador. Saí do inferno e fui ao céu. Glória a Deus! Da varrição e vassoura, para caneta de escrever, de Anotador. Glória a Deus! Foi meu primeiro degrau na CSN. E para resumir digo: ao longo dos anos fui de Servente a Presidente de uma das empresas controladas do Grupo CSN; a EPLAN Planejamento e Emissão de Seguros, onde fui considerado o melhor presidente entre as 10 empresas controladas do grupo CSN.

Venci. Por caminhos ásperos se vai aos astros. Ad astra per asperaitus.
Em 1976, fui agraciado, pela Alta Administração da CSN, com o título de exemplo digno de ser seguido.

Sebastião P*** aposentou-se como feitor mesmo.

Os principais supervisores no DFU, no meu tempo, foram: Engenheiro Hélio Motta Haydt –– Chefe do Departamento;        Leandro Carlos de Oliveira –– Chefe da Secretaria; José Bezerra Paraguay –– Subchefe; Fernando Homem da Costa –– foi Subchefe, após saída de Paraguay; Ênio Simões Leite; Mario Manghi Zanella — DPI/DFU; Químico Roberto Loureiro Pinheiro; Senhor Rocha –– Chefe do Delineamento; Auxiliar técnico — Chefe de Turno; Henrique Martinic — Chefe de Turno –– Leoni Soares.

…………………………………………………………………

Gratidão eterna àqueles que me ajudaram na caminhada: Leandro Carlos de Oliveira; Ostwald Rocha de Oliveira; Milton Seixas Smith; Darcy Bürger; Roberto Batres; Augustin Rimpel; Benjamim Mário Baptista; Odyr Pontes Vieira e o Doutor Plínio Reis de Cantanhede Almeida.

 

MAL DESCONHECIDO*

 

 “O mal é um produto da mente humana, e

pode ser superado pela mente humana.”

Albert Einstein

 

Era uma noite escura e chuvosa quando Maria decidiu pegar o ônibus para visitar sua família na cidade vizinha. Ela estava ansiosa para chegar logo, mas não imaginava que aquela seria a viagem mais assustadora de sua vida.

Assim que entrou no ônibus, Maria notou algo estranho. O motorista parecia muito nervoso e as luzes internas do veículo estavam piscando incessantemente. Além disso, a maioria dos passageiros parecia desconfortável e inquieta.

Maria tentou ignorar esses sinais e se concentrou em seu celular, mas logo percebeu que não havia sinal de rede. Então, decidiu tirar um cochilo para passar o tempo.

Ela acordou com um grito. Um dos passageiros estava gritando de pavor e apontando para a janela. Maria olhou para fora e viu um vulto estranho correndo ao lado do ônibus. Era como se alguém estivesse perseguindo-os.

O motorista acelerou o ônibus, mas o vulto continuava a segui-los, cada vez mais rápido. A partir daquele momento, os passageiros começaram a entrar em pânico e Maria sentiu um calafrio percorrer sua espinha.

De repente, o ônibus parou. Todos os passageiros ficaram em silêncio. O motorista saiu do veículo e olhou para a estrada escura. Quando voltou, ele disse que havia algo bloqueando a passagem.

Maria olhou pela janela e viu uma figura sombria parada no meio da estrada. Era uma pessoa com um capuz preto e uma máscara assustadora no rosto. O motorista tentou ligar o ônibus novamente, mas o veículo não funcionava.

A figura se aproximou do ônibus e começou a bater nas janelas, assustando ainda mais os passageiros. Maria fechou os olhos e começou a rezar, pedindo proteção e forças para enfrentar aquela situação assustadora.

O motorista, afinal, conseguiu fazer o ônibus funcionar novamente e acelerou até a cidade de destino de nossa personagem. Quando chegaram à rodoviária, os passageiros desceram em estado de choque e Maria percebeu que sua vida nunca mais seria a mesma depois daquela noite assustadora.

A caminho da casa paterna, com o pensamento na estranha figura vista na estrada, Maria não se relaxa, e mais e mais, acelerando os passos, se julga perseguida pelo monstro, a ponto de emitir um estrondoso grito, que ecoa pelos ares, e que faz com que as algumas pessoas, assustadas, acendam as lâmpadas de suas casas e cheguem às janelas a ver o que se passa na rua.

E eis que um ruído de objeto que cai desperta na mulher o mais recôndito temor ao desconhecido. Já não podendo conter-se em si, põe-se a chorar compulsivamente e a correr pelas calçadas, dobrando esquinas, vendo seres fantasmagóricos atrás de arbustos, recuando por conta disso e mudando de direção, tudo muito rápida e irracionalmente.

Como num pesadelo, ela sente de súbito que vai cair, e cai, e se levanta desesperada, e já não tem a noção de onde está, e então grita pelo nome do pai, da mãe e de irmãos, e, não se controlando o mínimo, sobe os degraus da escada de uma igreja antiga e se agacha, encolhendo-se em posição fetal. E treme, treme e aos poucos vai-se apagando, apagando, apa...

Quando acorda, encontra-se em um leito de clínica, meio sedada, e ouve das pessoas à sua volta que tivera uma crise de pânico, que medos, traumas do passado vieram à tona de seu ser e se impuseram, deixando-a fora de si, espécie de pânico, que a tomara de assalto e a dominara de modo que foi preciso ingerirem-lhe medicamentos fortes.

Vítima dos próprios demônios, como tantos neste mundo de meu Deus, Maria agora era apenas mais uma, mais uma que se submeteria aos tratamentos possíveis oferecidos pela medicina.

O pânico geral dos passageiros daquele ônibus, o nervosismo do motorista, o ônibus paralisado no meio do caminho, nada fora real, era seu inferno interior tão somente e uma convulsão, eram os espasmos unicamente de seu subconsciente, era ela mesma, ela mesma, e as ondas do mar revolto de seu passado, mal resolvido e que insistia em não deixá-la em paz.

 

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*Escrito a quatro mãos, com Antônio Pena.


FIGURONA: UM CASO ESTRANHO

 

Você acredita em poder supranormal? Se não acredita, vou contar-lhe um causo baseado em fato que lhe deixará com a “pulga atrás da orelha”. Vamos seguir a vereda do sobrenatural de Almeida, segundo Nelson Rodrigues.

Nós morávamos em Chapéu D’Uvas, no sítio Chalé, alugado de um fazendeiro e mandachuva local, chamado José Vieira Tavares. Seu Zequinha, nome abreviado dele, tinha uma novilha bela, altiva e zebusada. Branca como neve, chifruda e de instinto agressivo. Quando ela deu a primeira cria, a bezerrinha nasceu morta, e ela, que se chamava Figurona, só deixava se esgotar na base do laço e dois homens segurando o parão; e, um terceiro, fazia a ordenha (falavam esgotamento), com total dificuldade. A vaca, obstinada, saltava e pulava e dava coices para os lados, até se desamarrar. Em poucos dias, desistiram de amansá-la, e ela ficou no pasto com as demais vacas e não voltou ao curral. Seu Zequinha, então, num gesto de amizade e consideração, cedeu-a a meu pai, para dela cuidar e usufruir. Meu pai trouxe Figurona para nosso sítio, onde, arisca, ficava no topo, no alto do pasto. Ela só descia para dessedentar no córrego, que corria na baixada. Distante ficou até parir de novo, a segunda cria: uma linda bezerrinha, pintada de preto e branco, que recebeu o nome de Pintadinha. Mas que imensa dificuldade para tirar leite de Figurona. Agora, ela atacava/pegava também. Ai de quem passasse desavisado em nosso sítio! Eu, menino de terreiro, era auxiliar do retireiro, que, no caso vertente, era o meu pai ou, na sua falta, José Esteves, nosso colono ou agregado. Eu punha o parão nela e o segurava, para que tirassem o leite. Figurona não deixava: pulava, mugia, negaceava, chifrava e bufava. Certa vez, intentou pular a cerca do curral, após soltar-se da corda que lhe amarrava as pernas. Aí, meu pai desistiu. Na caçamba havia apenas meio litro de leite batido. Meu pai pegou um pau-mulato, aferroado e deu uma coça na vaca Figurona. Ela berrava, mugia e as marcas das pauladas faziam estrias em seu couro. Com o ferrão, feria-a em todo o corpo. Ele foi de uma maldade atroz. Figurona aquietou-se, após tantas ferroadas. No dia seguinte, ela veio ao curral. E quando meu pai ficou de cócoras e pegou num peito dela, ela ficou quieta, mas tremeu tanto que o couro se enrugou acima do úbere até às costelas. Como sempre, só deu um ou meio litro de leite. A vaca era um caso perdido. Figurona estava destinada ao corte. Mas meu pai viajou, e nós ficamos sem retireiro. Pensamos em chamar seu José Esteves, mas ele estava adoentado. Lembramo-nos do senhor Bilico, nosso empregado eventual. Ele estava prestando serviços a outro sitiante. Minha mãe estava descorçoada. Morávamos ao lado de uma estrada vicinal, que vinha da fazenda Sesmaria, de propriedade de Anísio Vieira, filho de seu Zequinha, citado. Mamãe esperou, paciente, na janela de nossa casa, o tropeiro/retireiro, que traria o leite da Sesmaria, para embarcá-lo para a Cooperativa de Leite, em Benfica. Quando ele ia passando, minha mãe pediu-lhe, por favor, que tirasse o leite de nossas vacas. Ele concordou. Era um bom homem. Fácil foi para ele ordenhar as dez vaquinhas de meu pai. Aí vem o caso estranho da vaca Figurona. Já o disse que ela dava pouco leite, porém, nesse dia, o moço retireiro apenas jogou a corda aos pés da vaca e amarrou a bezerrinha, como usual na pata dianteira. Figurona não se mexeu, não demonstrou sentir cócegas, desceu leite continuamente, enquanto o retireiro esguichava das tetas leite, como em riacho. Em poucos minutos, a caçamba estava entornando espuma de leite pelas bordas, e a caçamba enchia-se com dez litros... Foi assustador para nós. Nunca mais Figurona voltou a dar a mesma quantidade de leite. Estranho, né? Há pessoas que têm o olho forte, magnetismo animal, domina com simples olhar. Creio que aquele retireiro tinha poderes especiais: em vez de bater, conversou com o animal. Ele era meio bizarro e selvagem, tinha cheiro de leite, mijo e barro. 

Meninos, eu vi.


PRETINHO

 

Eu amava o cavalo Pretinho. Seu pelo luzidio, liso tal seda, valia a pena alisá-lo e acariciá-lo. Pretinho me amava também. Ele fora deixado em nosso sítio por um cigano, que passara em direção à Terra de Sol (Ceará). Pelo que deduzi de nossa conversa, o cigano se referia ao Vale do Jaguaribe, onde havia muitos dos seus. Eles pernoitaram no sítio Chalé, de meu pai, J. M***. Antes de partirem, nos venderam dois tachos e o cavalo Pretinho. Por ele levaram duas galinhas e um ganso. 

Os nômades eram espertos numa baldroca, e pensavam que Pretinho estava doente pra morrer, mas se enganaram. Cuidei dele com carinhos, como se trata um bom amiguinho. Dei-lhe leite na mamadeira, acariciava-o, pondo sua cabeça em meu colo, fiz-lhe a cama de palha e conversava com ele pedindo que sarasse para passearmos em pastos verdejantes. Ninguém sabia o mal de Pretinho, ele se salvou porque era seu destino: viver. No mais, algumas benzeduras, de seu Bilico, purgante de sal mineral de Grauber, cerveja preta e muito amor. 

Quando Pretinho se levantou, pôs-se a brincar pelo curral, e eu ia atrás dele, incentivando-o.  Éramos unha e carne.

O tempo passou, sua função é passar. Pretinho era campolina, touruno ou roncolho. Ele cresceu lindo, seus pelos refulgiam. Eu, menino do terreiro, finalmente encontrei um companheiro. Eu tinha muitos afazeres: capinar o pomar e a horta; tirar erva das plantas frutíferas; plantar pequenas rocinhas de milho e feijão; ajudar a tirar o leite; buscar vacas, bezerros e apartá-los à tarde; preparar ração para os animais; descascar e debulhar milho e aguar horta. A vida no campo é assim: trabalho 365 dias por ano, de sol a sol, sem descanso, nos domingos, feriados ou dias santos de guarda. 

Após debulhar o milho para trocar por fubá, dividia o produto em dois sacos, com pesos iguais: quinze quilos em cada saco. Buscava e arreava Pretinho. Ele, dócil, jamais escoiceava. Após arreá-lo, encostava-o ao lado do paiol e jogava os sacos de milho na sua garupa. Então, partíamos: ploc, ploc, ploc, ploc, para outro arraial, que se chamava Paula Lima. Percorríamos a estrada de rodagem pela beirada, junto às ervas-cidreiras e, por nós, passavam os carros, caminhões, ônibus e caminhões-tanque, de gasolina, em direção a Belo Horizonte. 

Pretinho jamais passarinhava. Nunca fui derrubado por ele. Em Paula Lima, entregávamos os sacos de milho, na serraria de seu Sendas, também moleiro, que trataria de moê-lo no moinho elétrico. Seu Sendas ficava com um percentual da moagem, era a maquia (cinco litros). Outrora, a serraria era enorme; após a derrubada das florestas do entorno, seu Sendas não tinha mais madeira. Tudo acabou; ficando apenas o moinho de fubá.

De nosso sítio a Paula Lima eram seis quilômetros, pouco menos, pouco mais; sendo a metade da caminhada em rodovia macadamizada, a velha e curvilínea Rio-BH, atual BR-040. Como Pretinho era extremamente manso, ele jamais negaceava com o trânsito dos caminhões, ofegantes, ao nosso lado. Pretinho em tempo algum precisou ser esporeado, ele sabia o seu dever. Raramente eu o montava em passeios lúdicos. Só o cavalgava a serviço do sítio. 

Para buscar Pretinho no pasto era muito fácil: um pouco de milho na mão e eu o chamava emitindo um som tchom, tchom, tchom, produzido pela língua, repuxada e, a seguir, pressionada contra dentes, alvéolo e o palato. Às vezes, eu simplesmente o chamava: cá, cá, cá, agitando o milho na mão. Ele vinha mansamente se pôr ao meu lado. Era apenas passar-lhe o cabresto e montá-lo.

Uma só vez Pretinho “aprontou” contra mim, mas foram as más companhias: puseram dois cavalos xucros no pasto, e eles detestavam entrar no curral. Chegavam até à porteira, cheiravam o chão e disparavam morro acima. Pretinho os acompanhava. 

Afora a atribuição de cavalo sendeiro, Pretinho servia muito mais ao meu pai. Até posso lembrar que o “velho” no início da vida era trabalhador, bom chefe de família e sofrera muito na juventude, pois tivera que assumir a responsabilidade por quatro irmãos, pelo falecimento do pai dele e meu avô. 

Nossa vida corria tranquila, e meu pai arrendou um sítio de nome Azevedo, bem longe de nossa morada, porém muito maior, onde se tirava bastante leite, que era vendido à cooperativa de Benfica. 

Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe. Um indivíduo, invejoso de nome A.L***, foi ao dono do sítio que papai alugara e ofereceu o dobro pelo aluguel. Papai teve que cobrir a oferta e não gostou. No ano seguinte, novamente, o invejoso ofereceu valor superior ao do meu pai, e ele, de novo, cobriu a oferta, para ficar com o sítio. Entretanto, achou de bom alvitre não levar desaforo para casa e interpelou duramente o adversário. Após troca de palavras ásperas, meu pai, ingênuo, falou: “Você quer ficar com o sítio, compre minhas vacas! O preço é 120 contos de réis”. (Mais de um milhão, hoje). Essa foi a deixa que o concorrente esperava. Ele se virou com agiotas, amigos, recursos próprios e arranjou o dinheiro. 

Fim de uma família feliz...

Meu pai recebeu a enorme quantia na sala de nossa casa. Vi-o contar cada mil réis. Daí em diante, nossa vida desmoronou. Papai julgou-se rico e caiu na “gandaia”: festas, viagens, bailes, leilões, amigos, futebol, mulheres, amantes... E nunca mais trabalhou. Todos os dias, ou quase todos, me mandava buscar Pretinho e arreá-lo. Ele o montava e ia para o povoado de Paula Lima beber, jogar e caçar prostitutas. Desde a manhã até à noite, Pretinho ficava amarrado debaixo de uma árvore, no adro da Igreja. Não havia comida nem bebida para o pobre animal. Numa dessas idas, meu pai encontrou o cavalo pateando o chão, um sinal de cólicas, e nem ligou para o problema. Voltou para casa, meio bêbado. Como não me abalei para desarrear o cavalo, seu João zangou-se tanto que me expulsou de casa. Eu não saí, não tinha para onde ir, engoli a humilhação. Mas Pretinho estava com infausta dor de barriga. Meu Deus! Era só despejar pelo nariz dele uma garrafa de cerveja preta. Simples, assim; mas não foi feito.

E, no dia seguinte, Pretinho estava morto, na outra margem do rio Paraibuna...

Quando eu me for deste Vale...

... Serei feliz, com Pretinho, no céu das estrelas fixas.

ANTÔNIO PENA


 EM SÍNTESE

 

— “Viagens?”

— “Paisagens novas?”

— “Mudança?”, me inquirem,

                                                    quando

apraz-me sempre a volta, não as idas;

se olho mais é para dentro, e me deleita

                                                                  e basta

aquilo a que

chamam rotina.


 A RESPOSTA

 

Adquirira, em Minas,

pequena propriedade rural

e, por esse tempo,

costumava passar finais de semana

e feriados ali,

junto à natureza,

respirando o ar puríssimo da roça

e gozando do seu sossego.

E justamente num desses passeios

foi que eu dei pela falta dos tico-ticos

e tizius — passarinhos que um dia

habitaram nossos quintais,

e que não tinham o menor valor comercial,

diferentemente dos

pobres dos canários e trinca-ferros,

que eram caçados e condenados,

por causa de seu canto,

à prisão perpétua em minúsculas gaiolas,

das quais grande parte

era construída com hastes de folha de embaúba

e varetas de bambu, tendo fundo

improvisado com lata

ou papelão. Lembro-me

de que as pobres das aves,

na vã tentativa

de se libertarem do cárcere, tanto,

mas tanto

se debatiam

que

causavam escoriações em torno ao bico.

Mas, ainda sobre os tizius

e tico-ticos, o que ocorrera

com eles, qual a razão

do seu sumiço?

 

Em visita a um de nossos vizinhos

teria a resposta.

Notara a presença de alçapões armados,

embora na casa

não houvesse qualquer pássaro preso.

Daí, questionada a finalidade das armadilhas,

a confissão, espontânea,

de que as roças de milho eram muito prejudicadas pelos passarinhos. 

Nem foi preciso se prosseguisse a conversa,

eu já tinha a resposta,

não só sobre a finalidade dos alçapões armados

como à pergunta que a mim mesmo me fizera,

acerca do desaparecimento

dos tico-ticos e tizius, que,

juntamente com rolinhas, sanhaços, sabiás

um dia povoaram nossas matas.


“LEITO DE FOLHAS VERDES”

 

Abrindo ao acaso

as Poesias completas

de Gonçalves Dias, deparei com o título

de uma de suas composições

por ele denominadas “Americanas”,

a qual, entre tantas outras do autor,

admirara em minha juventude:

— “Leito de folhas verdes”, e iniciei

imediatamente

a releitura dela.

 

E, à medida que a ia relendo, ia

me embriagando,

me extasiando

com aquelas palavras tão

bem elaboradas, com

o ritmo daqueles decassílabos.

 

E eis que cheguei aos dois primeiros versos da terceira estrofe,

com os quais me deliciaria ainda mais:

 

— “Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,

já solta o bogari mais doce aroma!”

 

É que sempre os guardara de cabeça,

conquanto não me lembrasse

de quem eram, a que

poema pertenciam, e, de repente,

estavam ali,

à minha frente:

 

— “Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,

já solta o bogari mais doce aroma!”

 

Logo me vi lá em meados

dos anos 80. Adquirira

os Poemas de Gonçalves Dias,

edição de bolso

da Ediouro.

 

Como é bom recordar,

Como é bom

deparar num livro “novo”

com um texto já conhecido, lido

e admirado outrora.

 

Tal coisa já

me havia ocorrido, por exemplo,

ao rever o poema “Ladainha”,

de Cassiano Ricardo,

também em suas

Poesias completas. (Não

que eu não soubesse, nesse caso,

de quem eram tais versos, mas porque

me esquecera sinceramente deles,

que, se não me engano, lera

pela primeira vez

num velho número da revista Seleções ,

e relera

outras vezes

em livros didáticos, durante

minha vida estudantil.)

 

Mas voltemos aos portentosos versos

que me levaram a escrever este poema:

 

— “Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,

já solta o bogari mais doce aroma!”

 

Lembra-me o forte impacto que me causaram. Amei

de cara o nome “tamarindo”,

tendo ficado curioso

em conhecer a árvore que o leva,

bem como,

obviamente,

sua flor.

 

Na época, não havia internet,

nem celular.

 

Demoraria eu um tempo

até conhecer, numa

revista de botânica,

um tamarindeiro,

o que, mesmo assim

(ou talvez por isso),

me foi algo

gratificante.

 

Nessa mesma revista, aproveitei

para conhecer também o arbusto

de nome bogari, encantando-me

com o branco de sua flor,

tendo embora

me ficado a curiosidade

de conhecer ainda o seu perfume,

já que o poeta mesmo

foi quem o sugerira prazeroso:

 

— “... já solta o bogari mais doce aroma!”

               ­­­­­­­­­­­­­­­­­­_______________

 

O bom de novos livros

nem sempre é a novidade

que porventura tragam, mas

o que já conhecemos e, súbito,

ou propositadamente,

revemos durante o percurso silencioso

de uma leitura ou, simplesmente,

ao folheá-los, distraídos,

ou mesmo, ainda,

abrindo-os, ao acaso,

em determinada página,

como comigo se deu

abrindo eu

as Poesias completas,

de Gonçalves Dias, e aqui eis que narro,

poeticamente,

pelo fato de ter deparado

com o título de uma de suas composições

por ele denominadas “Americanas”,

a qual, entre tantas outras do autor,

admirara em minha juventude:

— “Leito de folhas verdes,

e sobretudo com dois de seus admiráveis versos:

 

— “Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,

já solta o bogari mais doce aroma!”,

que sempre guardara de cabeça,

conquanto não me lembrasse

de quem eram e a que poema

pertenciam. 

  

PASSEIO & NEGÓCIOS

 

(DE CARONA NO CAMINHÃO DE LEITE — IDA E VOLTA)

 

O caminhão de leite para um instante em frente à tranqueira da pequena propriedade rural. Meu avô desce da cabine, muito cuidadosamente. Agradece ao motorista. Meu amigo e eu praticamente saltamos da carroceria. Destreza da juventude. Não. Não agradecemos.

Correria pelo caminho. Agitação. Meu avô nos pede que o esperemos.

Eis a pinguela. Apoio balançando muito, atravessamos para a outra margem do rio. Que gosto o de estar ali! Uma rês nos saúda, mugindo a certa distância. Que gosto, o de estar ali!

Seguimos pelo caminho, caminho estreito, feito pelo próprio gado, que segue por ele diariamente, em fila indiana, rumo ao curral e na volta dele. Como nós o fazemos agora, um atrás do outro.

Gosto de ver a casa, alta, paredes de pau a pique muito brancas. Gosto de subir-lhe a escada. Abrir-lhe a porta. Adentrá-la. Gosto de pegar a velha canequinha sem asa. Descer ao curral. Tomar, enfim, o leite cru recém-tirado da melhor vaca. Ali mesmo, junto àquele aglomerado de animais em festa sob a tímida réstia de luz matinal tentando romper a cerração: reses com as crias, galinhas, galinhas-d’angola, garnisés, um cão vadio e mesmo um gato ronronante de alegria por nos ver.

Alheios à conversa de meu avô com o camarada, falamos de outras coisas. Para nós mais interessantes.

E eis que já nos encontramos entre as laranjeiras do pomar. Os galhos pendem com o peso dos frutos. Muitos, espalhados pelo chão, apodrecendo. Recolho-os em um balde, corto-os em quatro partes com um velho facão sem ponta e distribuo-os ao gado. Gosto, o de estar ali, ali, fazendo algo que é nada, realmente. Relevante, contudo, para mim.

Meu avô, agora, nos grita:

— O caminhão! Vamos embora...

Deixo, vazio, o balde no chão, rente ao cocho em torno ao qual as reses se reúnem. Sem tempo para depositá-lo no lugar de onde o tirei. Sem tempo para mais nada.

— Adeus, universo rural. Adeus. (Agradecido à vida por esses poucos minutos, sem que profira a palavra gratidão ou mesmo nela esteja pensando, dou-lhe eu as costas.) Quem sabe em breve. Adeus!

 

DE UMA FOLHA

 

Que escaldante este sol de verão!

Ontem, surpreendeu-me

uma rajada de vento. Rota,

às intempéries tenho resistido.

E demoradamente amareleço. (Inveja

tenho às irmãs a que assisto caindo,

serena e ritmadamente,

afinal desprendidas

do galho que as trazia aprisionadas.)