Do livro:
Contos, memórias e alguma poesia
“Ninguém passa pela vida em brancas nuvens.”
“Por que
existo?”
“Onde estou? Por
que estou aqui?”
“Quem
sou eu?”
“O
que eu quero?”
“Pra onde estou indo?”
“Meu Deus! Por
que voltei?”
“Era preciso
voltar... após cinquenta anos sem esquecer...”
“Onde ficava a
maldita Pensão?”
“Vamos viajar no
tempo...”
................................................................................................................
Era em 1953.
Eu, adolescente,
estava inquieto quanto ao destino e em crise existencial.
Perguntas iam e
vinham sem respostas: Que será de mim? Tenho algum futuro neste povoado? Vale a
pena viver? Desesperança...
Na encruzilhada
da vida, fiz o que achei melhor: pus algumas roupas na mala de viagem e parti
sem saber para onde ia; talvez para onde soprasse o vento. De certa forma, o
caminho mais viável seria o Rio de Janeiro, e, assim, peguei o ônibus para o
destino escolhido: Rio.
A empresa de
ônibus tinha a sigla EVA, que queria dizer “Empresa Viação Automobilística”.
Quatro horas e meia após o início da viagem, desembarquei no terminal Mariano
Procópio, sito na Praça Mauá. Desajeitadamente, com o malão de viagem batendo
em minhas canelas, eu pisei no asfalto ao lado do Terminal rodoviário. Li o
letreiro: Hotel Éden, e a ele me dirigi. O hotel, um mafuá de terceira
qualidade, na verdade, alugava quartos para encontros de casais; ou seja, para
prostituição. O nome do hotel era mesmo apelativo. Mesmo assim, não pensei duas
vezes e, graças à boa vontade do porteiro, consegui um cantinho, um cubículo,
para passar a noite, debaixo de uma escada que rangia a cada passo. E fiquei
hospedado dias e dias. Ufa! Economizei o máximo, comendo pastéis, sanduíches e
bebendo refrigerantes, enquanto procurava “colocação”, emprego em uma firma
qualquer. Não consegui nada, porque mal conhecia a cidade e, quando chegava a
um endereço indicado, a vaga já tinha sido preenchida. Preenchida!
Preenchida! Preenchida! E assim, vinte e dois dias, se passaram, e eu
desisti. Resolvi viajar para a cidade de São Paulo, que, naquele tempo, era
chamada locomotiva do Brasil. Embarquei na Viação Cometa, que vendia bilhete
mais em conta; e em oito horas estava na grande metrópole. Mais uma vez, me
dirigi à primeira pousada, no bairro do Brás, onde o letreiro indicava: “Vagas
para solteiros”. Paguei a primeira diária e subi dois andares, segurando
corrimão podre, e escada pronta pra desabar. Eu não podia ser exigente, pois a
verba era curta. No mesmo dia, fui ao endereço de antigo conterrâneo, que já
estava na Capital havia alguns anos. A pousada dele era pior do que a minha,
acreditem! Na verdade, um pardieiro que ficava no subsolo de casarão colonial.
Quando entrei no quarto, senti que era bastante abafado, escuro e tresandando
mofo. Esperei e conversei com o “conterra”, que, embora me atendesse
cordialmente, não me ofereceu nada, nem auxílio, nem refeição, nem esperança.
Então, voltei ao “hotel” curtindo minha solidão. No andar inteiro, enorme, não
havia qualquer divisória. Quem deitasse numa cama do lado norte, ouviria
perfeitamente o rádio do companheiro noutra cama, na zona sul, eu não dormia
nada. Assim sendo, fui procurar outro “conhecido”, Jairo Pimont. Havíamos nos
encontrado em Ewbank, Minas, e fizemos tênue amizade. Apesar da superficial
relação, corri atrás do fio de esperança: “Quem sabe de onde não se espera é
que vem?” Jairo morava na Rua Tabatinguera, numa ladeira no centro da cidade.
Bem recebido por ele, tomei coragem e lhe transmiti o desejo de me empregar na
Capital Paulista.
Tive sorte, a
firma onde Jairo trabalhava precisava de um estoquista. Sua planta ficava na
Avenida Santo Amaro, no Brooklin paulista, bairro periférico, do outro lado da
cidade. No dia seguinte, fomos à fábrica que trazia o nome no topo do galpão o
nome: C****. Ela fabricava bicicletas. No escritório da empresa, me
apresentaram ao Chefe do Departamento de Pessoal e fui “fichado”, melhor
dizendo, admitido. O gerente era B****. Num esforço extraordinário de memória,
lembro-me de que o chefe da Seção de Estoque era seu Henrique,
que, em tempo de carnaval, gostava de cantar a modinha que fazia grande sucesso
na época:
“Você pensa que cachaça é
água?
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão.”
Ou,
então: As águas vão rolar (que ele achava que se devia cantar: As águas
vão rolarem).
O chefe do
Departamento de Pessoal indicou-me uma pensão que ficava na mesma rua, a dois
quilômetros. Para ela me dirigi, com a surrada e enorme mala de viagem nas
costas.
A pensão de Dona
Assunta não trazia qualquer dístico; ficava pouco acima do nível da rua. Era um
enorme casarão, tendo à frente frondosa figueira-branca. No Brasil Império, com
certeza, fora o solar de algum barão do café; agora, uma casa carcomida,
encardida, suja: um cortiço. Removeram as paredes divisórias, criando enorme
salão, para os locatários/pensionistas. Éramos vinte e quatro, todos
nordestinos, exceto um mineiro: eu, uai! Todos eles gente boa e sofrida como
eu. As camas praticamente unidas; os armários mal davam para que neles se
guardassem as roupas, sabonete, aparelho de barbear, pasta de dentes, escova,
chinelas de dedo, sapato e outras tralhas. Ao fundo, uma parede separava a
cozinha e o refeitório dos hóspedes. Atrás da casa as precárias instalações
sanitárias: vaso e chuveiro. A latrina não era limpa, explicando melhor, o WC
era só higienizado no final de semana. Dá para imaginar o fedor que exalava,
porque as fezes se acumulavam até extravasar do vaso sanitário. E cada tolete!
Uma cloaca. E o xixi... Pense num piso pleno de urina. A sujeira atraía as
repulsivas moscas. Asco!
E como comia a
rapaziada! A mesma gororoba todo dia: arroz, feijão mulatinho, inteiro;
bertalha, e um pedaço de carne de vaca: aponevrose e aparas. De manhã, um pão
francês, manteiga rançosa e café. Excepcionalmente, havia macarronada nos
feriados.
Dona Assunta não
se importava com a qualidade da alimentação, nem com a higiene. Ela só pensava
no dinheiro que entrava no cofre. Tinha de ser assim, porque ela não confiava
em ninguém, e já havia tomado alguns “beiços”. Ela, a filha, a neta e o genro
moravam ao lado da pensão e tinham vida simples, independente de nós, os
pensionistas. Dona Assunta era vermelha, gordona, sangue italiano, gritava
muito, discutia com o filho e, quando a netinha chegava perto, ela dizia:
“Pinica daqui!” e a menina esfumaçava. Não eram más pessoas, absolutamente.
Como controlador
de estoque, trabalhei na empresa por três meses. Caí na esparrela de acreditar
em anúncio de jornal, oferecendo vaga para emissor de notas fiscais, pagando
salário bem superior ao que eu ganhava. Ah, que besteira fiz! Mas quem não se
arrisca não petisca, não é? Pedi demissão e fui pra a outra fábrica, que
ostentava o nome O*** (processava areia monazítica). Adorei a
mudança: sala com ar condicionado, e nos serviam chá quente ou gelado várias
vezes ao dia. As minhas colegas, moças gentis e alegres. Na verdade, eu me
sentia bem no ambiente de trabalho. Decorrido um mês e pouco, fui chamado à
sala do Chefe de Pessoal da firma que, sem cerimônia, friamente me devolveu a
Carteira Profissional, sem nela ter posto o carimbo da empresa, me pagou e me
despediu... Simples, assim. Eu não sabia, nem me informaram que era emprego
temporário. O titular retornara da licença médica, para assumir seu posto. O
chão fugiu-me aos pés e as gentis funcionárias apenas me olharam de viés, e
sorriso contrafeito.
Será que fiz mal
em trocar o certo pelo duvidoso? Vamos pensar que um tropicão serve para darmos
dois passos pra frente. Vivendo e aprendendo, tal é o lema.
Novamente, sem
emprego, sem esperança, ao deus-dará, deambulei na Avenida Santo Amaro, amargo.
Passei por uma banca de jornal e comprei um para recomeçar a pesquisar ofertas
de emprego. Voltei à pensão de Assunta. Naquele dia, fatídico, eu e um colega
de pensão ficamos sós. Primeiro, ele cismou de trocar uma camisa minha, bela e
cara, por um par de sapatos; não topei; em seguida, ele me ofereceu uma lapiana
em troca; recusei. Então, ele pôs a faca firme na minha garganta e me molestou.
Chorei baixinho, sangrei a noite inteira... Demais para mim. De madrugada,
quando as cortinas da noite se afastavam, e todos dormiam profundamente,
arranjei meus trastes na mala, devagarinho e silenciosamente pulei da janela e
sumi no mundo.
Lamentavelmente,
não paguei à Dona Assunta. Fui para a estação Roosevelt e comprei bilhete para
embarcar no trem “baiano[1]”, de volta à minha terra, nas Minas
Gerais. Passei o dia na Estação, com medo de ser pego pela polícia. O trem saiu
às 20 horas.
Parágrafo para
Eros, deus do amor: No vagão, sentei-me ao lado de bela morena e iniciamos um
bate-papo de sondagem e conhecimento. Soube que ela ia para Monte Azul.
Conversa vai, conversa vem, logo mão na mão e amasso coalescente, nada além.
Seus olhos fundos e ardentes pareciam despir minha alma. Então, pedi licença e
fui me refrescar na plataforma do vagão, enquanto descascava e mordiscava uma
laranja-baía. Era madrugada, ouvi o chefe do trem anunciar com voz sonolenta:
Volta Redonda. Fim do parágrafo.
O maquinista
reduziu a velocidade ao mínimo. No lusco-fusco enevoado havia um ambiente
fantasmagórico, porque milhares de lâmpadas luziluziam nos gigantescos galpões
que se sucediam interminavelmente. Tive um deslumbramento e pensei com meus
botões: “Aqui deve haver muito emprego...”
O apelo do
destino... Compulsão. Saltei do cavalo de aço para a Cidade do Aço. E outra
longa história recomeça... Leitores e leitoras, o que acham que aconteceu?
Convido-os a relatar, com sua sensibilidade, minhas novas aventuras.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
E muitos
anos decorreram, muita água marulhou sob a ponte. Jamais esqueci a Pensão de
dona Assunta. Tive no vaivém da vida grandes problemas, e grandes vitórias,
vacilos incríveis... “Por caminhos ásperos se vai aos astros”. Afirmo não ser
de minha natureza e de meu caráter “fintar” ou dar prejuízo a alguém. Um homem
de bem não faz papel desprezível, mesquinho. As brumas da memória sempre se
abriam para lembrar-me do “cano” (malfeito) que dei à dona da Pensão, se bem
que houvesse atenuante, pelo trauma que sofri. Precisava resgatar a dívida, por
questão de honra. Homem maduro, e com a vida resolvida, voltei ao local do
“crime”. Queria me desculpar, acertar a conta com juros e correção, todavia o
progresso seguira adiante e, onde outrora existira o casarão da Pensão havia um
prédio moderno, com esquadrias de alumínio fosco, vidro fumê, e vários andares.
O Brooklin paulista do passado ficara no passado.
E Assunta...
Onde estaria? Na mansão dos bem-aventurados, certo?
“Que pena! Não
redimi o débito”.
Eis a minha
confissão, minha catarse e meu remorso.
Que dona Assunta
tenha me perdoado, e que Deus me perdoe.
... Ah, nunca
mais comi bertalha!
Ah... e se eu
seguisse para Monte Azul? com a morena de cabelos pretos? e olhos acanelados?
ACERTO
DE CONTAS
Usando da
licença poética a mim concedida no conto “A pensão de dona Assunta”, vou
assumir a mente, o corpo, a alma e possuir o confidente, enfim, tornar-me
seu alter ego... E contar tudo, pedindo desculpas desde já, porque
vou gastar muito mais do que as linhas pontuadas, quando convocado fui a
continuar a saga do nosso herói. Ouçam-me narrar a minha/dele lenda pessoal.
Poderia dizer as
célebres palavras: “Veni, vidi, vici.” (Vim, vi, venci.). Não se deu
assim, tão fácil. Desci na estação ferroviária de Volta Redonda. Era madrugada
com muita cerração e muito frio. Quando o sol brilhou no céu límpido, eu fui à
cidade velha, sabendo que dois primos trabalhavam em uma sapataria que
ostentava o nome Cl****, talvez em homenagem à filha que assim se chamava. Às
oito e trinta ou pouco mais chegaram meus parentes, e a eles me identifiquei,
solicitando informações atinentes a algum tipo de emprego. Eles nada podiam
fazer por mim, entretanto o dono da sapataria, seu Geraldo, me
convidou a ficar na casa dele, enquanto eu achava emprego na grande empresa que
vira ao amanhecer. E, morando com eles, fiquei três meses, e salário zero. Não
reclamei... A vida é dura: deboche, humilhação, exclusão, sofri, mas “por
caminhos ásperos se vai aos astros”, temos que escolher o silêncio, às vezes e
engolir em seco. Esse foi o meu caso, pois o interesse maior era entrar na
grande empresa de luzes tremulantes na madrugada enevoada. Após o início de
trabalho quase escravo, na dita loja de sapatos, consegui uma vaga na
siderúrgica, mediante simples apresentação de carta-bilhete ao superintendente
da firma. Digo: a humildade é o caminho da vitória: “Bem-aventurados os
humildes”. O engenheiro superintendente olhou-me com ar de desdém e falou: “Vou
lhe dar uma vaga de servente de fundição”. Curvei-me ao destino mais uma vez...
Esse local, fundição, pode ser considerado antessala do inferno, porque é
fumaça, fogo e gás por todos os lados. Comecei a trabalhar com as ferramentas
que me deram: um par de luvas, uma máscara contra poeira e uma pá. Fui mandado
ao subterrâneo, onde deveria repor areia na correia transportadora. Notei que a
areia era quase incandescente, decorrente da desmoldação de peças fundidas, mas
tarefa é tarefa, eu aceitei a provação. Quase fui engolido por um eletroímã,
porque elevei a pá ao alto e ela foi sugada. Não era meu tempo... No dia
seguinte, mandaram-me fazer limpeza no telhado do altíssimo galpão industrial.
Meu Deus! Descobri que tinha medo de altura, doença chamada acrofobia. Subi no
telhado de rastos e voltei do mesmo modo, assim que terminei o famigerado
serviço de limpeza da chaminé do forno Cubilô[2]. Eu sofri desesperadamente: tonturas,
escorregões, náuseas. Molhei as calças. Com certeza, fiz meu trabalho deitado
no telhado, nem sei por que não desmaiei. No outro dia, dirigi-me à chefia e
mostrei que trazia boa bagagem intelectual. Fui promovido a Anotador. Daí em
diante, subi na hierarquia da empresa e fui ao pináculo; e, nas alturas, ajudei
muita gente (inclusive familiares). Eventualmente, tomava um copo de café no
bar Favorito, onde o garçom atencioso, de nome Etto** me atendia. Na Companhia,
recebi homenagens, honrarias, diplomas e comendas. Tinha salário alto e fiz
curso de metalurgia e, mais tarde, o curso de Direito. Enfim, chovia na minha
horta. Na matemática espiritual, meus débitos e créditos quase se equilibraram,
mas meu tempo terreno chegou ao fim de modo abrupto; um evento trágico se deu.
Fui convidado a visitar o alto-forno da empresa e, desavisado e imprudente,
subi ao topo dele. Ora, todos sabem, eu sabia também, que no topo da chaminé
eventualmente ocorriam emanações excessivas do gás monóxido de carbono (CO),
altamente venenoso, tanto assim que era proibido galgar aquele lugar sem as
precauções devidas. Paguei caro pela minha estupidez e aconteceu: desmaiei...
Às pressas, tentaram me salvar fazendo respiração boca a boca e massagens no
peito. Apesar dos esforços dos paramédicos, foi tudo em vão. O que acontecera
comigo? De repente, ouvi, sem entender o porquê das gritarias, os pedidos de
socorro, a maca e a ambulância. Com sirenes ligadas e a toda velocidade, eu fui
levado ao hospital. Os enfermeiros gritavam: “CTI, desfibrilador, oxigênio”;
médicos diziam: “Pressão caindo, batimento zero”; e eu ouvia tudo, bem nítido,
mas sem tomar qualquer decisão, achando não ser parte do problema. Fui sugado
por um cone de luz, estava de volta à Pátria espiritual, em condições
deploráveis, inesperadas e cedo demais para a minha partida. Vi-me assim do
“outro lado”: a perturbação e o ignoto me aterravam, seguiu-se vontade enorme
de dormir para sempre. Pareceu-me ouvir choros e lamentos de entes queridos...
Relembrei todos os fatos da minha vida. Revi amigos de infância, da juventude e
parentes. Meu espanto era indescritível. Afinal, onde estava? Era o mundo das
sombras... Deparei-me com um vulto translúcido vindo em minha direção. Um
avantesma a se desvelar, e se identificar e me falar com doçura: “Lembra-se de
mim? Eu sou a dona da pensão: Assunta”. Tremi, porque lhe devia uma quantia
substancial ao fugir da pensão. Sofri eterna lembrança e vergonha. Ajoelhei-me
e pedi perdão pelo ato, pois não havia como resgatá-lo. Assunta me confortou e
me disse perdoar, porque imaginava que algo grave se passara, ao notar as
manchas de sangue coagulado na minha cama. Ela deduzira que eu fora vítima de
violência, na véspera da fuga. “O passado ao passado” disse-me. “Agora, você
está limpo daquela mácula. É momento de paz”. Minha ferida moral e espiritual
cicatrizou, e pela mão de Assunta, saí do umbral para o campo de luz, com bons
espíritos a me guiarem até a segunda vinda...
RENASCIMENTO
— Aonde você vai?
— Para minha casa...
— Agora esta é sua casa.
— Não reconheço este lugar.
— Ok, deixe-me explicar: Você
deixou na Terra o corpo material, agora é apenas alma ou espírito, está noutro
plano, noutra dimensão.
— Não entendo...
— Irmão, você morreu, foi envenenado com gás
carbônico. Esqueceu tudo, não é? Vou lhe contar, tintim por tintim, seu rito de
passagem...
A alma até então desorientada tomou ciência
da tragédia terrena.
— Estou ciente, agora, o que me espera?
— Como seu desencarne foi extemporâneo, fora
da hora combinada, você será orientado por mestres e voltará pra cumprir a
etapa final de sua estadia na Terra, é como se diz na contabilidade da Terra:
“restos a pagar”.
— Mas se eu não quiser cumprir o resto do
programa...
— Não é decisão sua, o renascimento é
obrigatório. Vou lhe apresentar seu guia espiritual.
Feita a apresentação, o mestre disse-lhe:
— Sua transição foi rápida e assustadora, sei
que ainda não assimilou seu novo estado, está confuso, mas compreenda: você
está do outro lado, no Plano espiritual. Noutra dimensão. Quero lhe ensinar
alguma coisa relativa à sua volta que não será dolorosa, mas necessária para
sua evolução; há retorno excepcional e voluntário que se dá quando se deseja
fazer o bem e se tem desenvolvimento para tanto, porém a maioria dos casos de
renascimento é restrita, e apenas para cumprir um prazo da vida anterior que
acabou repentinamente. O retorno de misericórdia é quando o Pai concede um
bônus para o espírito dar amor incondicional aos viventes...
Eu interrompi o mestre e pedi:
— Posso ter uma visão do que me espera no
retorno?
Como no descerrar de uma cortina, o Guia me
mostrou em filme de terror tudo que me esperava na nova vida. Tremi, era demais
para mim.
— Não quero voltar em nenhuma hipótese! —
exclamei.
— O retorno é mandatório, disse o Mestre.
— Meu livre-arbítrio há que ser levado em
conta: quero obtemperar, solicito uma audiência ao Divino Mestre[3].
— O Senhor de Luz, Mestre dos mestres, não
vai quebrar a corrente das idas e vindas, pois seria interromper o progresso
espiritual. Você há que se salvar e crescer pelos próprios méritos...
— Concordo plenamente com esse argumento,
porém o Criador é divina Essência, onipotente, onisciente, onipresente,
sumamente bom e justo. Ele é compassivo e compreenderá e atenderá o meu desejo.
Lembro-me de que nada nesta dimensão segue os parâmetros terráqueos, nenhuma
medida de lá, espiritual ou material, se aplica aqui; “Pedi, e dar-se-vos-á”:
eu imploro a divina graça.
Ouviu-se uma voz:
“Assim seja feito, meu filho. Você quer ficar
aqui? Fique! Esta é minha lei: a Lei da Graça, e acabou seu eterno devir”.
Epílogo
Esta trilogia foi feita sob a ótica do realismo
fantástico. Algo aconteceu no plano material com nosso personagem principal;
algo aconteceu com ele no plano espiritual, pressuposto. É, pois, uma visão
muito especial e peculiar sobre o plano/ideia de salvação vis-à-vis a
de progresso.
Por causa de problemas vividos e sofridos
pelo herói no plano terráqueo, ele não se conformou com a ideia do eterno
retorno, com a problemática de vidas sucessivas, para, enfim, alcançar a paz,
seja pela reencarnação, ou palingenesia, ou pela metempsicose. Daí, ele sugeriu
aos mentores uma solução: ficar com o Pai, onde há muitas moradas. Para tanto,
apelou para a graça de Deus[4]. Ele é amor, pode tudo, pode fazer
acontecer, isto é, conceder graça ao espírito ou alma, sem se ater a protocolos
estabelecidos por nós, humanos frágeis que somos e simples poeira cósmica, à
luz do universo.
Não chorem por mim, não tenham pena de mim,
não me invejem: tudo aconteceu como devia ter acontecido... Maktub!
[1] A partir dos anos 1950 existiu um trem direto:
São Paulo-Salvador, que passava por Belo Horizonte, mas havia pelo menos uma
troca de comboios por causa da quebra da bitola da Central, na região de Belo
Horizonte. Era chamado "trem baiano", pois era utilizado por
aventureiros e por passageiros que iam principalmente de São Paulo ao Norte de
Minas e Bahia e vice-versa. Foram os rápidos N-1e N-2.
[2] O forno Cubilô ou forno de cúpula é um
equipamento de fusão empregado para a produção de ferros fundidos, por meio da
refusão de ferro-gusa, mais coque, dolomita, manganês e calcário.
[3] “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.” (Rm10:13).
[4] “É pela graça que vós sereis salvos.” (Efésios 2:8)
COMPANHEIRO
Esta história não tem a ver com certa facção
política que tem o slogan: “A luta
continua, companheiro!” Eu quero escrever sobre meu gato, meu companheiro de
todas as horas, lá no sítio Casa Branca, em Juiz de Fora, onde eu vivi algum
tempo.
Assim que comprei o sítio, passei algum tempo
nele, por dois motivos: primeiro, queria descansar minha cabeça, pois havia me
aposentado, havia pouco, de uma grande empresa, onde trabalhara por 35 anos; e,
também, queria fugir da agitação da cidade grande, no caso, o Rio. Em segundo
lugar, eu tinha na cachola a ideia de escrever um livrinho sobre estranho caso
de paranormalidade que se dera em minha família. Assim, deixei a família
nuclear na cidade do Rio e fui morar sozinho na roça, ou no campo. Eu havia
dito aos meus amigos de trabalho que agora seria lavrador. Como me enganei...
Eu não me lembro como o gato foi parar na
minha casa. Penso que nosso caseiro o trouxe na mudança; talvez minha irmã o
tenha dado a mim, não sei. Certo ele era acinzentado e, com certeza, sem
pedigree. Ele era muito bravo, e por qualquer coisa arrufava para mim renhau mau! Cheguei a pensar ser ele
gato-do--mato. Com o passar do tempo ele acostumou-se comigo e não me deixava
só, daí chamei-o COMPANHEIRO.
Quando comecei a escrever meu livro, ao qual
dei o nome Possessão (está esgotado),
o gato subia na mesa, deitava-se de costas para mim e permanecia longo tempo
nessa pose. Quando, na cabecinha dele, achava que eu não ia parar de escrever,
ele se virava para mim e docemente, suavemente batia a patinha em minha caneta,
até que eu, chateado com as interrupções do felino, me levantava e dizia: “Chega,
você quer passear!” Ele também se levantava alegremente e
pulava para o chão. Nós saíamos ao terreiro, passávamos pelo curral e subíamos
ao pasto nas trilhas de capim brachiara
decumbens. O passeio era longo, em geral eu me dirigia à mina d’água
potável e, após muito caminhar, o gato começava: miau, miau, miau. Eu sabia, ele queria colo. E, de fato, eu o
pegava e ele se aninhava em mim. Enfim, éramos felizes.
Um dia ele apareceu arrepiado e vomitando
muito, pensei que estava envenenado. O vizinho tinha parte com o demo e para
ele matar um gato não era problema. Levei o gato ao veterinário de Benfica, que
constatou envenenamento com raticida, e prescreveu medicamentos para cortar o
mal, o que aconteceu. Certa feita, eu recebi a visita de uma família que tinha
um garoto, desses cheios de manhas e vontades. O garoto cismou de pegar o gato.
Ao que eu disse: “Não pega”! Ele insistiu, mas quando ele pegou Companheiro e o
levou ao peito, recebeu várias unhadas e o largou de pronto. “Não te falei?” —
disse-lhe.
E a vida seguia tranquila eu, meu gato, meu
cachorro meus gansos e minhas galinhas d’angola. Eita vida boa! Porém meu
vizinho não se dera por vencido e, como o veneno não funcionara, a contento,
ele atirou no gato, felizmente a bala só raspou na pele.
Companheiro tinha gosto refinado: ele adorava
ouvir música clássica, principalmente a “Protofonia”, do maestro Carlos Gomes.
Quando eu punha o long-play na
vitrola, ele ficava parado, extasiado, em frente ao aparelho, até a música
acabar. Porém, se eu pusesse uma música de carnaval, ele saía correndo para o
terreiro. Outro grupo que ele não suportava era o de Folia de Reis. Em janeiro,
algumas trupes passavam pelo sítio, nessa época, Companheiro desaparecia.
O gato tinha ciúmes de mim: se um visitante
chegava, ele ficava sempre ao meu lado, me vigiando. Aonde eu ia, ele ia
também, e ai de quem tentasse me afagar!
Eu nunca deixei qualquer animal ficar à noite
dentro de casa. À noitinha, punha todos pra fora: gato, cachorro, galinhas etc.
Eu comprava carne de segunda para alimentar
meus pets. No final da semana ia ao
açougue, em Benfica, e comprava quantidade suficiente de carne para a semana.
Chegava a casa, tratava dos bichos e punha a carne na geladeira.
Minha casa não era grande: dois quartos, uma
sala, cozinha, despensa e duas varandas. Como já o disse, meus animais ficavam
de fora da casa à noite. De madrugada, pelas cinco da manhã, do lado de fora da
janela do quarto onde eu dormia, começava o roçar do bichano no peitoril. Ele
ia de uma ponta à outra e sempre agitando o rabo e com ele batendo na janela.
Estava me avisando pra levantar-me. O que me encucava era que eu, por ter medo
de ladrões, dormia cada dia num lugar diferente, mas o gato sempre sabia onde
eu estava dormindo. Eu me levantava, fazia as abluções de praxe e, a seguir,
abria a porta da cozinha. Quem entrava primeiro? Companheiro, o qual ia me
enredando, dando voltas em torno de mim e me dirigindo para a geladeira. Ele
sabia onde eu guardava o alimento. Os bichos sabem muito mais do que
pensamos... Eu tratava dele e do cachorro com a carne e, em seguida, dava milho
às galinhas, gansos e patos.
Houve outra investida para matar meu
companheiro: jogaram água fervente nele, que escapou por pouco e veio miando
dolorosamente para casa.
Tratei-o como pude, mas ele perdeu muitos
pelos. Tomei uma decisão difícil para mim: resolvi doar Companheiro à minha tia
Niniva, que morava e ainda mora em Benfica. Mas como levá-lo? Não foi fácil,
todavia consegui laçá-lo e enfiá-lo num saco de aniagem; e ele riscando fósforos.
Com o coração partido, peguei carona numa fubica e levei-o a Benfica. São
dezesseis quilômetros de distância, em retas, curvas e trânsito intenso.
Pensem bem! São quilômetros de asfalto,
barulhos, buzinas e cheiros diversos, inclusive passando por uma fazenda com
seus estercos malcheirosos.
No meu entender, Companheiro saíra da minha
vida para sempre. Com surpresa total e muita emoção e — por que não dizer? —
alegria imensa, no dia seguinte, eu ouvi o roçagar na janela do meu quarto: era
o Companheiro que voltara. Como pode ser? Como ele, posto num saco, pode
relembrar os meandros do caminho? Dei-lhe comida e afirmei: “Você voltou,
ganhou o direito de viver aqui, com meu eterno carinho”.
Esta história não teve um fim feliz,
Companheiro foi sacrificado em ritual satânico, pelo tenebroso vizinho dono do
sítio Xoroquê.
Desgostoso, vendi meu sítio.
AS CECÍLIAS, SANTA CECÍLIA E EU
– Busca
rompante!
Com esta fala
bizarra eu e meus irmãos corríamos em direção à janela para ver o trem de ferro
passar. Eu tinha seis para sete anos e já sabia ler um pouco. Estava sendo
alfabetizado na escola de dona Cecília Nogueira, cursando o terceiro ano
primário. A vida descortinava-se para mim. Eu olhava o trem como se fosse uma
cobra gigante. Talvez carregasse mais de setenta vagões, na verdade não os
contava, mas lia as letras garrafais em cada vagão: CASA DE PEDRA. Eu dava asas
ao pensamento e imaginava/lucubrava “como seria uma casa de pedra”.
Informo que
mudáramos recentemente para um sítio de nome Chalé, no arraial de Chapéu
D’Uvas, perto da ferrovia, talvez a quinhentos metros ou menos. Vindos da roça,
éramos capiaus mesmo, sem dúvida: tabareis. Nunca havíamos visto um trem de
ferro, só conhecíamos carro de bois, chinchinante morro acima: Tá
pesaado, pesaado... Daí, “busca rompante” nos dava o trem.
E O TEMPO
PASSOU...
E ao correr da
minha vida, quantas Cecílias eu conheci?
Minha primeira
namoradinha: Cecília.
Minha tia,
Cecília, me dava palmadas.
Minha priminha,
Cecília, melhor Cicilinha, doce amiga;
Euterpe[1] de Santa Cecília, de meu tio Agostinho Aquino de
Almeida.
Aconteceu
que nos vaivéns da vida, mudei para Volta Redonda, onde há uma grande
siderúrgica: a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Descobri que aqueles
vagões, da minha infância, vinham de Lafaiete, para ser mais preciso, de Casa
de Pedra, destino CSN; todos carregados de minério de ferro, para os
altos-fornos da Companhia.
Fui admitido na
empresa em janeiro de 1955 (aos 21 anos) e saí encanecido para aposentar-me, em
outubro de 1987. Uma vida no emprego da minha vida, dedicada à
empresa. Meu único trabalho foi na amada CSN, onde fiz carreira de servente a
presidente de uma de suas subsidiárias: Emissão e Planejamento de Seguros —
EPLAN. Glória a Deus, que me deu cargo tão importante. Mas eu falava de
Cecília... Pois é!
Em Volta
Redonda, o padroeiro da cidade é Santo Antônio, seu templo fica no bairro
Niterói, porém a santa protetora da CSN e de seus trabalhadores é Santa Cecília[2]. Sua igreja fica num outeiro, encarando a Vila Santa
Cecília e as instalações industriais da Companhia, protegendo todos nós, bem
como a Empresa.
Sob a égide de
Santa Cecília, éramos felizes e sabíamos, e a CSN era nossa segunda mãe.
Sou religioso,
quando morei no bairro Bela Vista, assisti a muitas missas na Igreja de Santa
Cecília, oficiadas alternadamente pelos padres Bernardo Thus, Arnaldo, Paulo
Welker, Ernesto e outros, ocultos nas brumas da memória. Meus filhos tomaram a
primeira comunhão na Igreja de Santa Cecília, depois de instruídos pela
catequista, amiga Consuelo. Tempo, tempo, tempo... saudade, saudade. Atrás da
Igreja, fica o Teatro Santa Cecília (1955), o Centro Social Santa Cecília, o
salão de festas... Santa Cecília... e a Escola Santa Cecília. Existiu também o
Grupo Escolar Fazenda Santa Cecília em 1966. A CSN Construiu e patrocinou o Conservatório de Música Santa Cecília desde
1976.
Outrora, havia a
Fábrica de Macarrão Santa Cecília, perto do Posto JK. Não menos importante: o
Cinema Santa Cecília, (Poeirinha), sito na Rua 33, esquina com a Rua 40 e
fechado em novembro de 1976. No local, nos dias de hoje, erguem-se as torres I,
II, III, e IV. Ainda temos o Clube Náutico e Recreativo Santa Cecília. E, na
Volta Redonda antiga, cito o Mercado Santa Cecília, descaracterizado
totalmente. Existiu, também, nos idos de 1950 o Santa Cecília F. C.
Paro para respirar.
Não posso, nem
quero esquecer a fazenda Santa Cecília (muito importante no Ciclo do Café),
desapropriada para que, nas suas terras, fosse construída a maior Usina
Siderúrgica da América Latina: a CSN. O nome da fazenda, provavelmente é
homenagem a Cecília de Moraes Monteiro de Barros (devota de Santa Cecília), e
mulher do comendador Lucas Antônio Monteiro de Barros[3].
Registro que uma Sociedade de Laticínios Santa Cecília Ltda. foi
criada em 1925, funcionando no local onde existia um antigo engenho de açúcar
em 1903 (Bairro Jardim Paraíba). Hoje, no local da antiga construção, só restou
a chaminé, que foi também parte de uma olaria. Onde estará o time de futebol:
Grêmio de Santa Cecília?
Por
fim, e não menos importante, registramos o Parque Natural Municipal Fazenda Santa Cecília do Ingá (antiga Fazenda Santa Cecília do Ingá), adquirido, em 1955,
pela Prefeitura de Volta Redonda.
A família
siderúrgica passeava na Fazenda Santa Cecília e ia até à cascata refrescar em
dias caniculares.
13
de agosto de 1966 — inaugurado no final da Rua 35 (Rua ao lado da ETPC) o Grupo
Escolar Fazenda Santa Cecília, hoje extinto. O 1o prédio
na Vila chamou-se Santa Cecília. Esta devoção acabou após a privatização da CSN.
Tempos “bicudos” vieram: o dono da CSN comprou a empresa, ganhou uma cidade e
fechou com arame farpado a estrada de acesso à cachoeira. Perguntar não ofende:
Por que a CSN virou as costas para a cidade?
O Hospital Santa
Cecília (HSC), mantido pela CSN, cuidava de todos os empregados e seus
dependentes, gratuitamente. Bons tempos, maravilhosos tempos que se foram. Após
a privatização, o HSC foi rebatizado: Hospital da Companhia Siderúrgica
Nacional (HSN); depois, Hospital Vita. No imbróglio CSNxVita, chegou-se a
cogitar o nome Hospital das Clínicas Santa Cecília, contudo
prevaleceu a razão social Hospital das Clínicas de Volta Redonda (HC)
e não mais faz misericórdia.
Definhou, esvaiu
a missão social da Empresa CSN. Tudo é cobrado. Acabou-se o que era doce... Não
há bem que sempre dure.
Santa Cecília é
soberana do povo de Volta Redonda. Certo?
Ao lado do
pronto atendimento do Hospital na rua 162, havia o ícone de Santa Cecília, em
um oratório, eu tinha por ele grande respeito e devoção.
Há dias
demoliram a ermida. Nela, o povo fazia preces, acendia velas e pedia graça:
“Pai, Filho, Espírito Santo, ajudai-me!”. Crentes de todas as denominações
religiosas, em momentos de grande desespero, rezavam/oravam à Santa Cecília,
pedindo mercê. Da janela do meu quarto dava para ver a edícula da Santa. Certa
feita, a esposa de um amigo rezou lá, pedindo um milagre para o marido, vítima
de câncer. O milagre não se deu. Nem sempre merecemos, ou, talvez, seja hora de
ir para a pátria espiritual. Só Deus sabe...
De repente, cadê
o oratório? Parece que findou o local de exprimir nossa religiosidade e
espiritualidade.
Só restou um
buraco onde estava o pequeno altar. — Uma ferida no muro de pedra, massa
quebrada e pó.
E sumiu o ícone
da Santa. Para onde? Para quê? Por quê? Quem foi?
Santa Cecília,
ainda que desaparecida ou perdida, esteve, está e estará sempre presente em
minha vida...
Meus filhos
nasceram no HSC, e perdem-se na noite dos tempos as vezes que nele consultei,
bem como meus familiares.
Hosanas! Salve!
Salve! Glória a Deus! Santa Cecília, de novo padroeira do Hospital CSN. Hoje,
30 de maio de 2020, tive imensa alegria ao ler na parede do Pronto Atendimento
na rua 162: Hospital Santa Cecília (HSC). O mundo deu muitas voltas...
O HSC voltou.
Nota: Assunção
formal do Hospital (HSC) 1/6/2020.
Cecília, empresta-me tua doce melodia:
Desejo converter todos os corações a Jesus!
Gostaria também de imolar minha vida,
ofertando a Jesus meus prantos e meu
sangue...
Dá-me saborear, nesta terra estrangeira,
o perfeito abandono, doce fruto do amor.
Dá-me, santa querida, a graça de voar
para longe desta terra
em revoada sem volta!
28
de abril de 1894
(in Obras
completas de Santa Teresa do Menino Jesus)
Longa vida ao Hospital Santa Cecília!
.........................................................................................................
[1] Deusa da música.
[2] Consagrada em 22/11/1945.
[3] Roberto Guião de Souza Lima, in Volta
Redonda do café e do leite, 140 anos de história, 2004, p. 32.
UM PORQUINHO FELIZ... ATÉ CERTO PONTO
Nasci numa tarde chuvosa e úmida, na fazenda
São Mateus. Minha mãe bufava, ou rouquejava, e nós, saindo um a um, rolando ao
chão. Finalmente, éramos oito irmãos e quatro irmãs, ao todo doze, qué-qué-qué.
Que ninhada! Para minha desdita, fui o filhotinho mais fraquinho. Os outros
logo, logo se desvencilharam dos invólucros protetores, arrebentaram o cordão
umbilical e mamavam nas tetas recheadas de colostro: hum-hum-hum! Demorei um
pouco a me libertar e corri com perninhas bambas para sugar leite quentinho,
mas... eu fui empurrado, pisado e expulso. Escorreguei por cima dos outros, fui
parar longe. Voltei, tentei, tentei e consegui, mas quase nada sobrara para
mim. Ah, que gostoso o leite da mamãe! Depois, veio a noite, fiquei no cantinho
mais frio, entre as pernas de mamãe, e meus irmãos, aninhados na sua quente
barriga. Em poucos dias, todos cresceram, menos eu, miúdo, excluído. Aí,
apareceu a Cinco Dedos — Maria. Magra, bela. Senti que era boa de coração. Ela
sorriu para mim, curvou-se sobre a cerca que dividia nosso mundo, me pegou no
colo, criticou minha fraqueza e elogiou meu focinho numa língua desconhecida,
que entendi pela doçura:
— Coitadinho, tão pequenino!
E me arrastou para longe daquele lugar, me
aquecendo, murmurando palavras meigas: “Mãê, eu vou cuidar dele, me dá um leite
aí, mãe!”
A mãe dela trouxe uma mamadeira de leite
igual à teta de minha mãe “porca”. Estava quentinho: é-um-é um-é-um! Meu jeito de mostrar satisfação. Mamei tudo.
Tempo vai, tempo vem... Chuva miúda não mata ninguém... Dias e noites, muitas luas se
passaram. Aprendi a linguagem dos homens. Ficava sempre ao lado de minha dona,
que me adotara para tudo: no trabalho, na folga, nas brincadeiras, até na hora
de dormir. No princípio, eu dormia ao seu lado, mais tarde, ficava aos seus pés
na mesma cama e, quando engordara, roncava num colchão de palhas de milho, no
chão e ao lado de sua cama.
Eu comia fubá molhado, insetos, cascas de
frutas, milho moído e, principalmente, muito leite na gamela rachada. Que bom!
Estranhava que minha dona cobrisse a pele com uma segunda pele a que chamava
vestido. Não me dava bem com aquilo; era estranho: meu pelo liso, amarelinho,
com pintas brancas, me bastavam. Minha dona costumava me dar soro de queijo no
coité. Gostava de repousar meu queixo na perna dela, e também das cócegas no
meu pescoço e barriga. Vez por outra, dava fugida ao local dos meus irmãos,
onde me chafurdava gostosamente no lamaçal. Minha amiga me pegava e me chamava
“Porco”. Ela não entendia que sentia muito calor e que precisava da lama pra me
refrescar. Ah, que delícia quando ela me jogava água!
Maria me imitava, grunhia e corríamos pelos
quartos. Eu dava oinc-oinc-oinc, e ela gritando: ai-ai-ai, a onça vai te pegar!
E, me pegando pelas pernas, me levantava, aconchegando-me ao colo. Vida boa...
Ficava feliz ao ouvi-la tocar viola.
Depois de brincar a valer, eu ia me deitar
numa poça de barro, à beira do córrego, no jabuticabal. Maria detestava meu
comportamento de me enlamear. Afinal, era um dos animais mais inteligentes:
entendia tudo o que diziam. Quando deitava na lama fresquinha, ela vinha correndo
e gritava: “Porco!” Apelido chato, desagradável, sim. Era asseado e precisava
de um lugar para fazer meu cocô. Maria, então, me levava para o banheiro,
tirava os bichos de junto a minhas bifurcadas unhas, e voltávamos a correr, a
brincar pelo terreiro e pomar. No curral, certa feita, uma vaca me deu uma
patada que resvalou pelo meu rabo e cortou um pedacinho. Perdi o lacinho do
rabo e fiquei cotoco. Agora, era Lé Cotoco. Uma vez, fui mexer numa corda que
não era corda: era cobra. Felizmente, ela picou a minha unha e nada sofri.
Achava as minhocas saborosas, eu comia de tudo: cascas, frutos, raízes, cana,
vermes, restos de comida, capim. Que pena, minha dona não podia fuçar como eu!
Seu nariz era fraco.
Um dia vieram dois homens mal encarados, me
seguraram, abriram um canivete e me cortaram lá atrás. Que dor horrível,
desesperadora! Guinchei, lutei, chorei, mas me imobilizaram com um joelho posto
na minha cara, enquanto o ajudante arrancava minhas bolinhas e as jogava para
os cachorros.
Não gostava de ser chamado “Porco”, parecia
demais com os humanos. Minha cara era diferente, mais bonita. Eu me espojava na
lama porque sentia calor, precisava me refrescar; em compensação, minha dona
tinha os pés gelados e me chamava para esquentá-los, enquanto costurava. Para
isso, servia. Ela me amava, sabia disso.
Crescera, estava pesado, engordara a olhos
vistos, sempre atendendo ao chamado de “meu Lé”. Tinha dificuldade em subir a
rampa da cozinha. O pai de Maria disse:
— É hora de mandá-lo pro açougue, tá no ponto.
De repente, ouvi o chororocar do macuco na
mata: fuóó. Meu coração disparou.
Maria me chamou e eu atendi. Ajudaram-me a
subir a escada de pedra. Meu peso beirava dezoito arrobas... Atravessei o
corredor até a entrada principal da casa. Ouvi o chio do carro de bois e o
aboio do carreiro: ôa- ôa-ôa ô-ôa, e, depois, o silêncio.
O carro de bois, recostado no último degrau
de pedra, esperava por mim. Maria entrou nele para me inspirar confiança.
Acompanhei-a... Ela pulou da esteira para o cabeçalho, atrás de mim, o
candeeiro fechou a traseira do carro, e fiquei preso e só.
— Vamo, eh, eixe, ei! — incitou o carreiro, e
os bois, em sincronia, partiram da fazenda para o açougue.
Eu ignorava o destino cruel reservado para
mim: oinc-oinc... oinc.
No brejo, a saracura se acusava: quebrei três potes e um coco e um coco.
Estava piando por mim.
A MISSÃO
Dizem que a gente vem à Terra com uma missão.
Se tive uma missão, Deus se esqueceu de me entregar o manual de instruções.
Então, bati cabeça aqui e ali a vida inteira e, no fim, nem sei se cumpri ou
não cumpri meu compromisso. Como dizem os sábios, quem não sabe aonde vai,
qualquer caminho serve, e eu cheguei lá... Como? Não sei! Mas, nos desencontros
da vida, dez mil máscaras eu usei, e só Deus sabe o preço que por elas eu
paguei. Eu posso dizer que vivi segundo o caminho estreito (o da salvação). Fui
criado sob a égide da Igreja Católica, no tempo que a missa era celebrada em
latim. Eu me ajoelhava, me levantava e tornava a me ajoelhar; batia no peito
dizendo e ouvindo mea culpa, mea maxima
culpa, sem saber de que era culpado. O sermão do padre, em geral, martelava
os ateus, os judeus, os espíritas e os maçons. Depois, isso acabou e não mais
se fala nos heréticos... Fui educado em colégio metodista, com muita honra.
Frequentei vários templos: Metodista, Batista, Luterano, Presbiteriano,
Assembleia de Deus, Testemunhas de Jeová, Adventistas do Sétimo Dia e outros.
Li o Livro dos Espíritos (de Kardec),
do princípio ao fim, nele há questões e respostas muito pertinentes; tive
noções da Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias (Mórmons); estudei Logosofia;
frequentei terreiros e sessões de Umbanda. Concluí que todas as denominações
religiosas/filosóficas querem o meu bem. Hoje, sou católico não praticante.
Também continuo sem saber o que vim fazer aqui (falei que não me deram
instruções). Dizem os espíritas que estamos na terra de expiação; e, segundo os
católicos, no vale de lágrimas. Sou fã do pensador Osho. Li muito sobre Jesus,
e sobre seu oponente: Lúcifer. Minha vida foi pautada pela ética, pelo extremo
amor à família, e à empresa onde trabalhei 35 anos. Cometi erros querendo
acertar; fiz besteiras, sabendo que eram besteiras mesmo. Arrependo-me... se
pudesse voltar atrás, faria diferente determinadas ações. Posso afirmar que
perdi o leme do barco da vida, ou o barco não tinha leme, então fiquei ao sabor
das ondas. Vou navegando sem saber minha origem, o porquê de tanto navegar e se
irei chegar a um porto seguro. O mundo é uma bola... possivelmente, voltarei ao
porto de onde parti, mais sábio, talvez, ou mais estúpido, quem sabe? Invejo os
que tudo sabem e de nada duvidam. Eu sou uma interrogação ambulante... Sou
viajante sem rumo na estrada eterna, num eterno devir. Sou passageiro,
timoneiro, motor e barco. Minha única opção: navegar e navegar, pois atrás vêm
outros nautas e outras praias. Quando eu for pro outro lado, farei uma petição
a Deus para conhecer minha folha corrida... e minha missão. Se tiver mais
débitos do que créditos... se vou encarar um retorno... e não quero retornar.
Há obstáculos imensos a superar; na verdade, durante o fluir da vida só se tem
momentos de extrema felicidade, no mais é matar um leão por dia. A felicidade
se constitui de marcos na longa e sinuosa estrada da vida. Eu sou luz e sombra
/ estrela cadente / um ser dormente, / SILENTE.
E a
minha missão... deixa pra lá...
O SENHOR SEBASTIÃO P***
“Eu sou eu e minha circunstância, e
se não salvo a ela, não me salvo a
mim.”
José Ortega y Gasset
Jamais esquecerei este nome...
Sebastião P***
No meu primeiro dia de
serviço, na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), fui apresentado a Sebastião
P***, que seria meu feitor, no Departamento de Fundição (DFU), da CSN.
Isto mesmo, verdade pura e
nua, eu fora admitido como servente, no pior lugar da CSN, o DFU. Hoje, afirmo,
sem possibilidade de errar, que o departamento era a antessala do inferno.
O feitor, Sebastião P***, de
início, não simpatizou comigo: não me cumprimentou, não perguntou meu nome e
não me disse quem ele era. Deu-me uma vassoura e uma pá e mandou-me limpar o
subsolo da fundição. Orientado por colegas, desci as escadas que levavam ao
subsolo. Lá estavam as correias transportadoras levando areia incandescente,
que caía das grelhas das recém-desmoldadas peças. A areia trazia junto consigo
pedaços de ferro fundido e escória, que brilhavam como estrelas no firmamento.
Estavam quase em estado de fusão. Eu usava máscara contra poeira, que era tanta
como o fog de Londres. Um colega de trabalho não enxergava o outro a
menos de um metro de distância. O serviço era brutal, muito cansativo, em
minutos estávamos cobertos de suor. Imediatamente nossos rostos ficavam
escuros, com o carvão em pó que vinha das grelhas. Éramos protegidos por máscara,
que filtrava aquela poluição: a cerração negra. No final das correias, um ímã
captava os resquícios de ferro, e a areia subia por sucessivas correias para
resfriamento e reutilização. Meu Deus! Quem diria que um ginasiano como eu era,
e granberyense do “papo amarelo”, estivesse no degrau mais ínfimo de uma
empresa: abaixo de servente, só o chão. Minha vida começou assim mesmo: dureza
e frieza, quiçá antipatia do chefe. Depois de algumas horas de trabalho, éramos
permitidos sair do subterrâneo para lavar o rosto e tomar água. Para mim, para
minha decepção, Sebastião era “carne de pescoço”,uma falha de somenos
importância, e o trabalhador era punido com um, dois ou mais dias de gancho ou
de suspensão. Além de perder o dia, perdia o repouso semanal remunerado, sigla
RR, anotado em nosso cartão de ponto. Quando retirávamos a máscara, a única
parte branca de nosso rosto era o nariz, que ela protegia. Mesmo assim, ao
assoarmos, praticamente saía um tijolinho de carvão coque das nossas fossas
nasais. E muitos de meus dias foram assim: Reposição de areia nas correias,
limpeza de banheiros, e varrição das áreas comuns, entre outros serviços mais
leves. Certa feita, meu feitor mandou-me encher caçambas com ferro-gusa e
carvão para uso nos fornos Cubilô, Revérbero, bem como para o forno elétrico.
Pesada tarefa. Eis que, ao dar uma passada, ela derriçou sobre o coque e torci
o corpo, e tomei um jeito na coluna. Passei três noites sem dormir e sentia
dores incríveis, até no pensar em me virar na cama. No dia seguinte, havia que
trabalhar, sem apelação, com dor ou sem dor. Eu tomava Melhoral para
amenizar a dor e seguia para o trabalho. Ai de quem faltasse! Conversei com um
amigo, que trabalhava na sapataria Clélia, na Av. Amaral Peixoto, em nossa
Volta Redonda (eu, antes de fichar na CSN, fora balconista na Sapataria Clélia.
Meu amigo aconselhou-me procurar um curimbamba próximo à “Coreia” (zona do
baixo meretrício) da cidade. Fui procurar o indigitado xamã e, pasmem, ele me
curou em três dias, e com três benzeduras. Sãozinho, passei a acreditar
piamente nas rezas de curandeiro. Na verdade, eu não aguentaria continuar
trabalhando com tantas dores. Lembro-me de que a reza era mais ou menos assim:
“Que que eu cozo?” perguntava o
benzedor. Eu respondia: “Carne quebrada, osso rendido, nervo torto”.
E ele atravessava com uma linha um pedaço de pano. A benzedura durou três dias,
e curado fiquei.
Sebastião P*** continuava me
dando as tarefas mais difíceis, no fundo ele queria e conseguiu me humilhar.
Julinho, meu amigo e companheiro, me protegia dele, executando algumas tarefas
para mim.
Os dias foram correndo, apesar
de as horas e minutos serem intermináveis. As luvas protetoras começaram a me
produzir calos. Um dia, do lado de fora do prédio, eu e um colega paramos
instantes de varrer a calçada, e ele saiu com essa: “Companheiro! a CSN é nossa
segunda mãe”. Pus-me a rir, mas ele havia proferido grande verdade A CSN foi
nossa mãe, como se verá depois comigo. Meu sofrimento estava no auge, e
Sebastião P*** deu-me uma tarefa impossível para eu executá-la: mandou-me
limpar as chaminés dos fornos elétrico, revérbero e Cubilô, no topo do prédio,
na outra vertente/aguada do pavilhão. Aí descobri que sofria de acrofobia.
Havia que subir do lado esquerdo, dobrar na cimeira e descer até às chaminés.
Não consegui fazer tal comedimento. O mundo rodava, eu olhava pelos buracos do
telhado, e a altura me puxava para baixo. Fim da linha, para mim. A duras
penas, rastejei de volta e reentrei na janela. Decidi mudar de função ou pedir
demissão. Fui ao banheiro, lavei meu rosto, sacudi o pó da calça e pedi audiência
ao chefe da Secretaria: Leandro Carlos de Oliveira. Expus a ele minha
escolaridade de ginasiano e pedi que me arranjasse um lugar melhor. Ele se
sensibilizou e emocionou com minha solicitação. Imediatamente falou com o
subchefe da fundição, Eng. José Bezerra Paraguay, que, após consultar o quadro
de pessoal, mudou-me a categoria de Servente para Anotador. Saí do inferno e
fui ao céu. Glória a Deus! Da varrição e vassoura, para caneta de escrever, de
Anotador. Glória a Deus! Foi meu primeiro degrau na CSN. E para resumir digo: ao
longo dos anos fui de Servente a Presidente de uma das empresas controladas do
Grupo CSN; a EPLAN Planejamento e Emissão de Seguros, onde fui considerado o
melhor presidente entre as 10 empresas controladas do grupo CSN.
Venci. Por caminhos ásperos se vai aos astros. Ad astra per asperaitus.
Em 1976, fui agraciado, pela Alta Administração da CSN, com o título de exemplo digno de ser seguido.
Sebastião
P*** aposentou-se como feitor mesmo.
Os
principais supervisores no DFU, no meu tempo, foram: Engenheiro Hélio Motta
Haydt –– Chefe do Departamento; Leandro
Carlos de Oliveira –– Chefe da Secretaria; José Bezerra Paraguay –– Subchefe; Fernando
Homem da Costa –– foi Subchefe, após saída de Paraguay; Ênio Simões Leite; Mario
Manghi Zanella — DPI/DFU; Químico Roberto Loureiro Pinheiro; Senhor Rocha ––
Chefe do Delineamento; Auxiliar técnico — Chefe de Turno; Henrique Martinic — Chefe
de Turno –– Leoni Soares.
…………………………………………………………………
Gratidão eterna àqueles que me ajudaram na caminhada: Leandro
Carlos de Oliveira; Ostwald Rocha de Oliveira; Milton Seixas Smith; Darcy
Bürger; Roberto Batres; Augustin Rimpel; Benjamim Mário Baptista; Odyr Pontes
Vieira e o Doutor Plínio Reis de Cantanhede Almeida.
MAL DESCONHECIDO*
“O mal é um produto da mente humana, e
pode ser superado pela mente
humana.”
Albert Einstein
Era
uma noite escura e chuvosa quando Maria decidiu pegar o ônibus para visitar sua
família na cidade vizinha. Ela estava ansiosa para chegar logo, mas não imaginava
que aquela seria a viagem mais assustadora de sua vida.
Assim
que entrou no ônibus, Maria notou algo estranho. O motorista parecia muito
nervoso e as luzes internas do veículo estavam piscando incessantemente. Além
disso, a maioria dos passageiros parecia desconfortável e inquieta.
Maria
tentou ignorar esses sinais e se concentrou em seu celular, mas logo percebeu
que não havia sinal de rede. Então, decidiu tirar um cochilo para passar o
tempo.
Ela
acordou com um grito. Um dos passageiros estava gritando de pavor e apontando
para a janela. Maria olhou para fora e viu um vulto estranho correndo ao lado
do ônibus. Era como se alguém estivesse perseguindo-os.
O
motorista acelerou o ônibus, mas o vulto continuava a segui-los, cada vez mais
rápido. A partir daquele momento, os passageiros começaram a entrar em pânico e
Maria sentiu um calafrio percorrer sua espinha.
De
repente, o ônibus parou. Todos os passageiros ficaram em silêncio. O motorista
saiu do veículo e olhou para a estrada escura. Quando voltou, ele disse que
havia algo bloqueando a passagem.
Maria
olhou pela janela e viu uma figura sombria parada no meio da estrada. Era uma
pessoa com um capuz preto e uma máscara assustadora no rosto. O motorista
tentou ligar o ônibus novamente, mas o veículo não funcionava.
A
figura se aproximou do ônibus e começou a bater nas janelas, assustando ainda
mais os passageiros. Maria fechou os olhos e começou a rezar, pedindo proteção
e forças para enfrentar aquela situação assustadora.
O
motorista, afinal, conseguiu fazer o ônibus funcionar novamente e acelerou até
a cidade de destino de nossa personagem. Quando chegaram à rodoviária, os
passageiros desceram em estado de choque e Maria percebeu que sua vida nunca
mais seria a mesma depois daquela noite assustadora.
A
caminho da casa paterna, com o pensamento na estranha figura vista na estrada,
Maria não se relaxa, e mais e mais, acelerando os passos, se julga perseguida
pelo monstro, a ponto de emitir um estrondoso grito, que ecoa pelos ares, e que
faz com que as algumas pessoas, assustadas, acendam as lâmpadas de suas casas e
cheguem às janelas a ver o que se passa na rua.
E
eis que um ruído de objeto que cai desperta na mulher o mais recôndito temor ao
desconhecido. Já não podendo conter-se em si, põe-se a chorar compulsivamente e
a correr pelas calçadas, dobrando esquinas, vendo seres fantasmagóricos atrás
de arbustos, recuando por conta disso e mudando de direção, tudo muito rápida e
irracionalmente.
Como
num pesadelo, ela sente de súbito que vai cair, e cai, e se levanta
desesperada, e já não tem a noção de onde está, e então grita pelo nome do pai,
da mãe e de irmãos, e, não se controlando o mínimo, sobe os degraus da escada
de uma igreja antiga e se agacha, encolhendo-se em posição fetal. E treme,
treme e aos poucos vai-se apagando, apagando, apa...
Quando
acorda, encontra-se em um leito de clínica, meio sedada, e ouve das pessoas à
sua volta que tivera uma crise de pânico, que medos, traumas do passado vieram
à tona de seu ser e se impuseram, deixando-a fora de si, espécie de pânico, que
a tomara de assalto e a dominara de modo que foi preciso ingerirem-lhe
medicamentos fortes.
Vítima
dos próprios demônios, como tantos neste mundo de meu Deus, Maria agora era
apenas mais uma, mais uma que se submeteria aos tratamentos possíveis
oferecidos pela medicina.
O
pânico geral dos passageiros daquele ônibus, o nervosismo do motorista, o
ônibus paralisado no meio do caminho, nada fora real, era seu inferno interior
tão somente e uma convulsão, eram os espasmos unicamente de seu subconsciente,
era ela mesma, ela mesma, e as ondas do mar revolto de seu passado, mal
resolvido e que insistia em não deixá-la em paz.
________________
*Escrito a quatro mãos, com Antônio Pena.
FIGURONA: UM CASO ESTRANHO
Você acredita em poder supranormal? Se não
acredita, vou contar-lhe um causo baseado em fato que lhe deixará com a “pulga
atrás da orelha”. Vamos seguir a vereda do sobrenatural de Almeida, segundo
Nelson Rodrigues.
Nós morávamos em Chapéu D’Uvas, no sítio Chalé,
alugado de um fazendeiro e mandachuva local, chamado José Vieira Tavares. Seu Zequinha, nome abreviado dele, tinha
uma novilha bela, altiva e zebusada. Branca como neve, chifruda e de instinto
agressivo. Quando ela deu a primeira cria, a bezerrinha nasceu morta, e ela,
que se chamava Figurona, só deixava se esgotar na base do laço e dois homens
segurando o parão; e, um terceiro, fazia a ordenha (falavam esgotamento), com
total dificuldade. A vaca, obstinada, saltava e pulava e dava coices para os
lados, até se desamarrar. Em poucos dias, desistiram de amansá-la, e ela ficou
no pasto com as demais vacas e não voltou ao curral. Seu Zequinha, então, num gesto de amizade e consideração, cedeu-a a
meu pai, para dela cuidar e usufruir. Meu pai trouxe Figurona para nosso sítio,
onde, arisca, ficava no topo, no alto do pasto. Ela só descia para dessedentar
no córrego, que corria na baixada. Distante ficou até parir de novo, a segunda
cria: uma linda bezerrinha, pintada de preto e branco, que recebeu o nome de
Pintadinha. Mas que imensa dificuldade para tirar leite de Figurona. Agora, ela
atacava/pegava também. Ai de quem passasse desavisado em nosso sítio! Eu,
menino de terreiro, era auxiliar do retireiro, que, no caso vertente, era o meu
pai ou, na sua falta, José Esteves, nosso colono ou agregado. Eu punha o parão
nela e o segurava, para que tirassem o leite. Figurona não deixava: pulava,
mugia, negaceava, chifrava e bufava. Certa vez, intentou pular a cerca do
curral, após soltar-se da corda que lhe amarrava as pernas. Aí, meu pai
desistiu. Na caçamba havia apenas meio litro de leite batido. Meu pai pegou um
pau-mulato, aferroado e deu uma coça na vaca Figurona. Ela berrava, mugia e as
marcas das pauladas faziam estrias em seu couro. Com o ferrão, feria-a em todo
o corpo. Ele foi de uma maldade atroz. Figurona aquietou-se, após tantas
ferroadas. No dia seguinte, ela veio ao curral. E quando meu pai ficou de
cócoras e pegou num peito dela, ela ficou quieta, mas tremeu tanto que o couro
se enrugou acima do úbere até às costelas. Como sempre, só deu um ou meio litro
de leite. A vaca era um caso perdido. Figurona estava destinada ao corte. Mas
meu pai viajou, e nós ficamos sem retireiro. Pensamos em chamar seu José Esteves, mas ele estava
adoentado. Lembramo-nos do senhor Bilico, nosso empregado eventual. Ele estava
prestando serviços a outro sitiante. Minha mãe estava descorçoada. Morávamos ao
lado de uma estrada vicinal, que vinha da fazenda Sesmaria, de propriedade de
Anísio Vieira, filho de seu Zequinha,
citado. Mamãe esperou, paciente, na janela de nossa casa, o tropeiro/retireiro,
que traria o leite da Sesmaria, para embarcá-lo para a Cooperativa de Leite, em
Benfica. Quando ele ia passando, minha mãe pediu-lhe, por favor, que tirasse o
leite de nossas vacas. Ele concordou. Era um bom homem. Fácil foi para ele
ordenhar as dez vaquinhas de meu pai. Aí vem o caso estranho da vaca Figurona.
Já o disse que ela dava pouco leite, porém, nesse dia, o moço retireiro apenas
jogou a corda aos pés da vaca e amarrou a bezerrinha, como usual na pata
dianteira. Figurona não se mexeu, não demonstrou sentir cócegas, desceu leite
continuamente, enquanto o retireiro esguichava das tetas leite, como em riacho.
Em poucos minutos, a caçamba estava entornando espuma de leite pelas bordas, e
a caçamba enchia-se com dez litros... Foi assustador para nós. Nunca mais
Figurona voltou a dar a mesma quantidade de leite. Estranho, né? Há pessoas que
têm o olho forte, magnetismo animal, domina com simples olhar. Creio que aquele
retireiro tinha poderes especiais: em vez de bater, conversou com o animal. Ele
era meio bizarro e selvagem, tinha cheiro de leite, mijo e barro.
Meninos, eu vi.
PRETINHO
Eu
amava o cavalo Pretinho. Seu pelo luzidio, liso tal seda, valia a pena alisá-lo
e acariciá-lo. Pretinho me amava também. Ele fora deixado em nosso sítio por um
cigano, que passara em direção à Terra de Sol (Ceará). Pelo que deduzi de nossa
conversa, o cigano se referia ao Vale do Jaguaribe, onde havia muitos dos seus.
Eles pernoitaram no sítio Chalé, de meu pai, J. M***. Antes de partirem, nos
venderam dois tachos e o cavalo Pretinho. Por ele levaram duas galinhas e um
ganso.
Os
nômades eram espertos numa baldroca, e pensavam que Pretinho estava doente pra
morrer, mas se enganaram. Cuidei dele com carinhos, como se trata um bom
amiguinho. Dei-lhe leite na mamadeira, acariciava-o, pondo sua cabeça em meu
colo, fiz-lhe a cama de palha e conversava com ele pedindo que sarasse para
passearmos em pastos verdejantes. Ninguém sabia o mal de Pretinho, ele se salvou
porque era seu destino: viver. No mais, algumas benzeduras, de seu Bilico, purgante de sal mineral de
Grauber, cerveja preta e muito amor.
Quando
Pretinho se levantou, pôs-se a brincar pelo curral, e eu ia atrás dele,
incentivando-o. Éramos unha e carne.
O
tempo passou, sua função é passar. Pretinho era campolina, touruno ou roncolho.
Ele cresceu lindo, seus pelos refulgiam. Eu, menino do terreiro, finalmente
encontrei um companheiro. Eu tinha muitos afazeres: capinar o pomar e a horta;
tirar erva das plantas frutíferas; plantar pequenas rocinhas de milho e feijão;
ajudar a tirar o leite; buscar vacas, bezerros e apartá-los à tarde; preparar
ração para os animais; descascar e debulhar milho e aguar horta. A vida no
campo é assim: trabalho 365 dias por ano, de sol a sol, sem descanso, nos
domingos, feriados ou dias santos de guarda.
Após
debulhar o milho para trocar por fubá, dividia o produto em dois sacos, com
pesos iguais: quinze quilos em cada saco. Buscava e arreava Pretinho. Ele,
dócil, jamais escoiceava. Após arreá-lo, encostava-o ao lado do paiol e jogava
os sacos de milho na sua garupa. Então, partíamos: ploc, ploc, ploc, ploc,
para outro arraial, que se chamava Paula Lima. Percorríamos a estrada de
rodagem pela beirada, junto às ervas-cidreiras e, por nós, passavam os carros,
caminhões, ônibus e caminhões-tanque, de gasolina, em direção a Belo
Horizonte.
Pretinho
jamais passarinhava. Nunca fui derrubado por ele. Em Paula Lima, entregávamos
os sacos de milho, na serraria de seu Sendas,
também moleiro, que trataria de moê-lo no moinho elétrico. Seu Sendas ficava com um percentual da moagem, era a maquia (cinco
litros). Outrora, a serraria era enorme; após a derrubada das florestas do
entorno, seu Sendas não tinha mais
madeira. Tudo acabou; ficando apenas o moinho de fubá.
De
nosso sítio a Paula Lima eram seis quilômetros, pouco menos, pouco mais; sendo
a metade da caminhada em rodovia macadamizada, a velha e curvilínea Rio-BH,
atual BR-040. Como Pretinho era extremamente manso, ele jamais negaceava com o
trânsito dos caminhões, ofegantes, ao nosso lado. Pretinho em tempo algum
precisou ser esporeado, ele sabia o seu dever. Raramente eu o montava em
passeios lúdicos. Só o cavalgava a serviço do sítio.
Para
buscar Pretinho no pasto era muito fácil: um pouco de milho na mão e eu o
chamava emitindo um som tchom, tchom, tchom, produzido pela língua,
repuxada e, a seguir, pressionada contra dentes, alvéolo e o palato. Às vezes,
eu simplesmente o chamava: cá, cá, cá, agitando o milho na mão. Ele vinha mansamente
se pôr ao meu lado. Era apenas passar-lhe o cabresto e montá-lo.
Uma
só vez Pretinho “aprontou” contra mim, mas foram as más companhias: puseram
dois cavalos xucros no pasto, e eles detestavam entrar no curral. Chegavam até
à porteira, cheiravam o chão e disparavam morro acima. Pretinho os
acompanhava.
Afora
a atribuição de cavalo sendeiro, Pretinho servia muito mais ao meu pai. Até
posso lembrar que o “velho” no início da vida era trabalhador, bom chefe de
família e sofrera muito na juventude, pois tivera que assumir a
responsabilidade por quatro irmãos, pelo falecimento do pai dele e meu
avô.
Nossa
vida corria tranquila, e meu pai arrendou um sítio de nome Azevedo, bem longe
de nossa morada, porém muito maior, onde se tirava bastante leite, que era vendido
à cooperativa de Benfica.
Não
há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe. Um indivíduo, invejoso de
nome A.L***, foi ao dono do sítio que papai alugara e ofereceu o dobro pelo
aluguel. Papai teve que cobrir a oferta e não gostou. No ano seguinte,
novamente, o invejoso ofereceu valor superior ao do meu pai, e ele, de novo,
cobriu a oferta, para ficar com o sítio. Entretanto, achou de bom alvitre não
levar desaforo para casa e interpelou duramente o adversário. Após troca de
palavras ásperas, meu pai, ingênuo, falou: “Você quer ficar com o sítio, compre
minhas vacas! O preço é 120 contos de réis”. (Mais de um milhão, hoje). Essa
foi a deixa que o concorrente esperava. Ele se virou com agiotas, amigos,
recursos próprios e arranjou o dinheiro.
Fim
de uma família feliz...
Meu
pai recebeu a enorme quantia na sala de nossa casa. Vi-o contar cada mil réis.
Daí em diante, nossa vida desmoronou. Papai julgou-se rico e caiu na “gandaia”:
festas, viagens, bailes, leilões, amigos, futebol, mulheres, amantes... E nunca
mais trabalhou. Todos os dias, ou quase todos, me mandava buscar Pretinho e
arreá-lo. Ele o montava e ia para o povoado de Paula Lima beber, jogar e caçar
prostitutas. Desde a manhã até à noite, Pretinho ficava amarrado debaixo de uma
árvore, no adro da Igreja. Não havia comida nem bebida para o pobre animal.
Numa dessas idas, meu pai encontrou o cavalo pateando o chão, um sinal de
cólicas, e nem ligou para o problema. Voltou para casa, meio bêbado. Como não
me abalei para desarrear o cavalo, seu
João zangou-se tanto que me expulsou de casa. Eu não saí, não tinha para onde
ir, engoli a humilhação. Mas Pretinho estava com infausta dor de barriga. Meu
Deus! Era só despejar pelo nariz dele uma garrafa de cerveja preta. Simples,
assim; mas não foi feito.
E,
no dia seguinte, Pretinho estava morto, na outra margem do rio Paraibuna...
Quando
eu me for deste Vale...
...
Serei feliz, com Pretinho, no céu das estrelas fixas.
ANTÔNIO PENA
EM SÍNTESE
— “Viagens?”
— “Paisagens
novas?”
—
“Mudança?”, me inquirem,
quando
apraz-me
sempre a volta, não as idas;
se olho mais
é para dentro, e me deleita
e
basta
aquilo a que
chamam rotina.
A RESPOSTA
Adquirira, em Minas,
pequena propriedade rural
e, por esse tempo,
costumava passar finais de semana
e feriados ali,
junto à natureza,
respirando o ar puríssimo da roça
e gozando do seu sossego.
E justamente num desses passeios
foi que eu dei pela falta dos tico-ticos
e tizius — passarinhos que um dia
habitaram nossos quintais,
e que não tinham o menor valor comercial,
diferentemente dos
pobres dos canários e trinca-ferros,
que eram caçados e condenados,
por causa de seu canto,
à prisão perpétua em minúsculas gaiolas,
das quais grande parte
era construída com hastes de folha de embaúba
e varetas de bambu, tendo fundo
improvisado com lata
ou papelão. Lembro-me
de que as pobres das aves,
na vã tentativa
de se libertarem do cárcere, tanto,
mas tanto
se debatiam
que
causavam escoriações em torno ao bico.
Mas, ainda sobre os tizius
e tico-ticos, o que ocorrera
com eles, qual a razão
do seu sumiço?
Em visita a um de nossos vizinhos
teria a resposta.
Notara a presença de alçapões armados,
embora na casa
não houvesse qualquer pássaro preso.
Daí, questionada a finalidade das armadilhas,
a confissão, espontânea,
de que as roças de milho eram muito prejudicadas pelos passarinhos.
Nem foi preciso se prosseguisse a conversa,
eu já tinha a resposta,
não só sobre a finalidade dos alçapões armados
como à pergunta que a mim mesmo me fizera,
acerca do desaparecimento
dos tico-ticos e tizius, que,
juntamente com rolinhas, sanhaços, sabiás
um dia povoaram nossas matas.
“LEITO DE FOLHAS VERDES”
Abrindo ao acaso
as Poesias completas
de Gonçalves Dias, deparei com o título
de uma de suas composições
por ele denominadas “Americanas”,
a qual, entre tantas outras do autor,
admirara em minha juventude:
— “Leito de folhas verdes”, e iniciei
imediatamente
a releitura dela.
E, à medida que a ia relendo, ia
me embriagando,
me extasiando
com aquelas palavras tão
bem elaboradas, com
o ritmo daqueles decassílabos.
E
eis que cheguei aos dois primeiros versos da terceira estrofe,
com
os quais me deliciaria ainda mais:
—
“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
já
solta o bogari mais doce aroma!”
É
que sempre os guardara de cabeça,
conquanto
não me lembrasse
de
quem eram, a que
poema
pertenciam, e, de repente,
estavam
ali,
à
minha frente:
—
“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
já
solta o bogari mais doce aroma!”
Logo
me vi lá em meados
dos
anos 80. Adquirira
os Poemas
de Gonçalves Dias,
edição
de bolso
da
Ediouro.
Como
é bom recordar,
Como
é bom
deparar
num livro “novo”
com
um texto já conhecido, lido
e
admirado outrora.
Tal
coisa já
me
havia ocorrido, por exemplo,
ao
rever o poema “Ladainha”,
de
Cassiano Ricardo,
também
em suas
Poesias
completas. (Não
que
eu não soubesse, nesse caso,
de
quem eram tais versos, mas porque
me
esquecera sinceramente deles,
que,
se não me engano, lera
pela
primeira vez
num
velho número da revista Seleções ,
e
relera
outras
vezes
em
livros didáticos, durante
minha
vida estudantil.)
Mas
voltemos aos portentosos versos
que
me levaram a escrever este poema:
—
“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
já
solta o bogari mais doce aroma!”
Lembra-me
o forte impacto que me causaram. Amei
de
cara o nome “tamarindo”,
tendo
ficado curioso
em
conhecer a árvore que o leva,
bem
como,
obviamente,
sua
flor.
Na
época, não havia internet,
nem
celular.
Demoraria
eu um tempo
até
conhecer, numa
revista
de botânica,
um
tamarindeiro,
o
que, mesmo assim
(ou
talvez por isso),
me
foi algo
gratificante.
Nessa
mesma revista, aproveitei
para
conhecer também o arbusto
de
nome bogari, encantando-me
com
o branco de sua flor,
tendo
embora
me
ficado a curiosidade
de
conhecer ainda o seu perfume,
já
que o poeta mesmo
foi
quem o sugerira prazeroso:
—
“... já solta o bogari mais doce aroma!”
_______________
O
bom de novos livros
nem
sempre é a novidade
que
porventura tragam, mas
o
que já conhecemos e, súbito,
ou
propositadamente,
revemos
durante o percurso silencioso
de
uma leitura ou, simplesmente,
ao
folheá-los, distraídos,
ou
mesmo, ainda,
abrindo-os,
ao acaso,
em
determinada página,
como
comigo se deu
abrindo
eu
as Poesias
completas,
de
Gonçalves Dias, e aqui eis que narro,
poeticamente,
pelo
fato de ter deparado
com
o título de uma de suas composições
por ele denominadas “Americanas”,
a qual, entre tantas outras do autor,
admirara em minha juventude:
—
“Leito de folhas verdes”,
e
sobretudo com dois de seus admiráveis versos:
—
“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
já
solta o bogari mais doce aroma!”,
que
sempre guardara de cabeça,
conquanto
não me lembrasse
de
quem eram e a que poema
pertenciam.
PASSEIO & NEGÓCIOS
(DE CARONA NO CAMINHÃO DE LEITE — IDA E
VOLTA)
O caminhão de leite para um instante em frente à
tranqueira da pequena propriedade rural. Meu avô desce da cabine, muito
cuidadosamente. Agradece ao motorista. Meu amigo e eu praticamente saltamos da
carroceria. Destreza da juventude. Não. Não agradecemos.
Correria pelo caminho. Agitação. Meu avô nos pede
que o esperemos.
Eis a pinguela. Apoio balançando muito,
atravessamos para a outra margem do rio. Que gosto o de estar ali! Uma rês nos
saúda, mugindo a certa distância. Que gosto, o de estar ali!
Seguimos pelo caminho, caminho estreito, feito pelo
próprio gado, que segue por ele diariamente, em fila indiana, rumo ao curral e
na volta dele. Como nós o fazemos agora, um atrás do outro.
Gosto de ver a casa, alta, paredes de pau a pique
muito brancas. Gosto de subir-lhe a escada. Abrir-lhe a porta. Adentrá-la.
Gosto de pegar a velha canequinha sem asa. Descer ao curral. Tomar, enfim, o
leite cru recém-tirado da melhor vaca. Ali mesmo, junto àquele aglomerado de
animais em festa sob a tímida réstia de luz matinal tentando romper a cerração:
reses com as crias, galinhas, galinhas-d’angola, garnisés, um cão vadio e mesmo
um gato ronronante de alegria por nos ver.
Alheios à conversa de meu avô com o camarada,
falamos de outras coisas. Para nós mais interessantes.
E eis que já nos encontramos entre as laranjeiras
do pomar. Os galhos pendem com o peso dos frutos. Muitos, espalhados pelo chão,
apodrecendo. Recolho-os em um balde, corto-os em quatro partes com um velho
facão sem ponta e distribuo-os ao gado. Gosto, o de estar ali, ali, fazendo
algo que é nada, realmente. Relevante, contudo, para mim.
Meu avô, agora, nos grita:
— O caminhão! Vamos embora...
Deixo, vazio, o balde no chão, rente ao cocho em
torno ao qual as reses se reúnem. Sem tempo para depositá-lo no lugar de onde o
tirei. Sem tempo para mais nada.
— Adeus, universo rural. Adeus. (Agradecido à vida
por esses poucos minutos, sem que profira a palavra gratidão ou mesmo nela
esteja pensando, dou-lhe eu as costas.) Quem sabe em breve. Adeus!
DE UMA FOLHA
Que
escaldante este sol de verão!
Ontem,
surpreendeu-me
uma
rajada de vento. Rota,
às
intempéries tenho resistido.
E
demoradamente amareleço. (Inveja
tenho
às irmãs a que assisto caindo,
serena
e ritmadamente,
afinal
desprendidas
do
galho que as trazia aprisionadas.)