domingo, 11 de fevereiro de 2024

 Alexei Bueno e sua poesia


Autor de uma obra consistente, abrangendo também o ensaio, o teatro e a tradução, o que mais chama a atenção na poesia de Alexei Bueno é o fato de que ela prima pela disciplina, ora comportando os mais variados ritmos e soante, isto é, valendo-se de todos os metros e rimada, ora apresentando-se torrencial, assimétrica, as linhas extensas, ultrapassando muitas vezes os limites da página, composta (as datas vêm a atestar) quase sempre de jato e dividida em partes, enumeradas, compreendendo, em seu todo, o livro a que dá título. Quando de sua estreia, aos vinte e um anos, com As escadas da torre, Alexei Bueno já se revela um artífice rigoroso quanto à forma, e sobretudo fértil, chegando a ultrapassar, nas 284 páginas do volume, o número de 150 poemas. Dois anos depois, reaparece com Poemas gregos, livro em que traz peças em versos brancos belissimamente elaboradas, que reportam, em alguns momentos, às Odes de Fernando Pessoa-Ricardo Reis. Em 1989, é a vez dos seus haicais brilharem, num trabalho exclusivamente do gênero, e, ainda, do poema-livro em versos distendidos intitulado A decomposição de J. S. Bach, modelo que se conservará ao longo de todo o itinerário artístico do poeta, intercalando-se com o de poemas de forma fixa de seu livro inaugural. Sobre tais poemas regulares, aliás, é curioso observar que, contrariando o comum então, na obra de seus pares, no que toca às, havendo, incidências sonoras (o mais das vezes apenas nas vogais — rimas toantes), nem um único verso do vate haverá que não combine e que essa combinação não seja, sem exceção, perfeita, característica que, entretanto, embora remeta a poesia de Alexei Bueno à de um Alphonsus de Guimarães ou um Augusto dos Anjos, não a compromete no sentido de que se ressinta do passado. Não mesmo. A temática explorada em seus sonetos, sextilhas, tercetos, decassílabos e redondilhas, somada ao tratamento que lhe é dado, dialoga com o melhor de seus contemporâneos. Definitivamente, não se trata de uma poesia de retrocesso, mas de algo novo. Surpreendentemente novo. E esse novo do poeta, paralelamente aos seus versos amplos e despejados, o situa, simplesmente, entre os maiores nomes da poesia brasileira da atualidade. 

 
Da esquerda para a direita: Gilberto Mendonça Teles, Jean 
Carlos Gomes e Alexei Bueno. 
 
POEMAS DE ALEXEI BUENO

ILUMINAÇÃO 
 
Eu fui um louco que viveu cem anos
Compondo um gigantesco manuscrito...
Madrugadas profundas de proscrito
Gastei sobre o papel dos meus enganos.
 
Memórias dos delírios mais insanos,
Razões petrificadas de algum grito,
Anotei, registrei, pus por escrito
Na chama congelada dos meus planos.
            
Quando enfim fui chegando junto à morte
Vi que tudo escrevera, e ri da sorte,
Que as páginas tocavam já nas sancas.
 
Foi aí que enxerguei, oh, dor distinta!
Que nunca na caneta houvera tinta,
E a morte entre um milhão de folhas brancas. 

1979
 
A FUGA
 
No bosque ridente
De ramagens vivas
Fogem os convivas
Do solar ardente...
 
Vão todos correndo,
Nem carregam nada,
Voam pela estrada
Desaparecendo.
 
Largaram lá a mesa?
Deixaram seu vinho?
Somem no caminho,
Resta a luz acesa...
 
Foram pelas portas,
Pelas grades belas,
Ruíram das janelas
Em piruetas tortas.
 
E assim para os galhos
Dão suas roupas brancas
E em carreiras mancas
Gritam nos atalhos...
 
Enquanto lá atrás,
Aceso e deserto,
O solar aberto
Não se apaga mais...
 
Perplexo e ateu
Sob o vento frio,
Enorme e vazio...
O solar sou eu. 

1983
 
***
 
Sob os de Hélios raios,
Sobre a relva fresca,
 
Vendo os pontos áureos
Mil, que, abelhas, voam,
 
Tendo da água o canto
Com que vai à morte,
 
E ouvindo a conversa
Dos caniços frígidos,
 
Assim, mortal, quase
Sou um deus. Não penso.

1984
 
***
 
Que a tua vida, já que o tempo é breve,
E o fim não dá motivo à covardia,
Tal qual o raio efêmero ela seja,
Que mal feriu a vista em trevas some-se,
Mas ilumina no seu tempo, e ainda
Que igual a ele, após extinta, soe.

1984
 
***
 
Quereias é o meu nome, e a minha vida
Como ébrio e louco eu a gastei inteira
Até que o gozo ardente e o ouro minguante
Trouxeram‑me a este túmulo. Um só dia
Não dei de minha vida insaciável
Ao fundo pensamento e às nobres causas,
E tão súcio a deixei qual nela entrara.
Mas meu pó, como vês, não pensa nisso.

1984
  
HELENA
 
No cômodo onde Menelau vivera
Bateram. Nada. Helena estava morta.
A última aia a entrar fechou a porta,
Levavam linho, unguento, âmbar e cera.
 
Noventa e sete anos. Suas pernas
Eram dois secos galhos recurvados.
Seus seios até o umbigo desdobrados
Cobriam-lhe três hérnias bem externas.
 
Na boca sem um dente os lábios frouxos
Murchavam, ralo pelo lhe cobria
O sexo que de perto parecia
Um pergaminho antigo de tons roxos.
 
Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,
Compuseram seus ossos quebradiços,
Deram-lhe à boca uns rubores postiços,
Envolveram-na em faixas perfumadas.
 
Então chamas onívoras tragaram
A carne que cindiu tantas vontades.
Quando sua sombra idosa entrou no Hades
As sombras dos heróis todas choraram.

6-5-1992
 
POESIA
 
Essa se vai
Mas sempre volta,
Nunca nos trai,
Nunca nos solta.
 
Damos-lhe uns reles
Trapos com prantos
E ela faz deles
Místicos mantos.
 
Damos-lhe a lama
Da alma, e ela acende
Nisso uma chama
Que a noite entende.
 
Damos-lhe a finda
Vida, e ela a alça
A outra tão linda
Que a ida faz falsa.
 
Essa não mente,
Essa não passa,
Mira de frente
Glória ou desgraça.
 
E quando a Morte
Nos pisa, branda,
Essa diz, forte:
Levanta-te e anda!

10-6-1992
 
CACOS
 
Fragmentos, sim, fragmentos, mas de quê?
Que formaremos juntos, nós, pedaços?
Que imagem, qual visão que não se vê
Nascerá da união dos nossos traços?
Nós, cacos, nós, partidos, nós, a falta
Do resto, da espantosa explicação,
No que daremos, fim que aos olhos salta,
E quem nos juntará? Qual ser? Qual mão?

14-10-1998
 
LAPA
 
Nesta casa antiga,
Sob estas volutas,
Como ri com as putas
Entre uma e outra briga.
 
Como virei copos
E extingui charutos,
Discuti com brutos,
Vaiei misantropos.
 
Urinei nas pias,
Vomitei nas portas,
Com passadas tortas
Vi nascer os dias.
 
Velha, velha casa,
Como ainda és a mesma.
(Não tens dentro a lesma
Que nos funda e abrasa.)

19-9-2004
  

Nenhum comentário:

Postar um comentário