RUY ESPINHEIRA FILHO, ESCRITOR E POETA
(Orelha do livro Vozes de Aço — XXII Antologia Poética de Diversos Autores)
POEMAS DE RUY ESPINHEIRA FILHO
Os objetos
permanecem claros.
Habita a moldura
uma mulher de faces
cor-de-rosa.
Sobre a mesa de mármore
um cavaleiro de porcelana
saúda as visitas.
A caneta ainda escreve
com a mesma tinta
de um azul levemente melancólico.
Na gaveta, dormindo
sob cartas e poemas,
o revólver aguarda.
DIA DE FINADOS
Tantos são os abandonados
e caminham ásperos no silêncio.
Há os que rezam, os que choram,
os que se mantêm
impenetráveis.
E todos depois retornam às casas, aos pequenos
mitos auxiliares de cada dia
sob o indiferente azul do céu.
As flores depositadas sobre as sepulturas
absolvem os mortos.
CAMPO DE EROS
Amor: esta palavra acende uma
lua no peito, e tudo mais se esfuma.
E testemunho: eis que Amor deixou
ferida cada coisa que tocou.
E tudo dele fala: a mesa, a cama
(como abrasa este hálito de chama!),
o bar, cadeiras, livros e paredes
vivem, revivem: de fomes e sedes
a corpos saciados. Tudo fala,
tudo conta. Só a boca é que se cala.
Amor. Do extinto pássaro, o voo
prossegue, inexorável. Mas perdoo,
eu, essa lâmina que me escalavra,
revolve em mim, em sua funda lavra,
amor, restos de amor, gestos quebrados,
enganos, mais amor, olhos magoados,
e fúria, e canto, e riso, e dança, e dor.
E a Quimera. E amor, amor, amor
por toda parte trucidado e em flor.
ULISSES
para Valdomiro Santana
O vento canta
o vento
canta
que ninguém volta
canta o
vento
em tua janela
em tua alma aberta sobre a
distância.
Este sal em tua boca
não é do mar
sim
do lago em que submergem
teus olhos
porque sabes
que tudo é apenas
uma vez
como
canta o vento
em tua janela
como
dói
em teu coração:
que ninguém volta.
Ítaca
é só de onde
se vem.
ENQUANTO
Um dia recordarei
que aqui estive, assim, à brisa
de janeiro, folhas verdes
acenando sobre o muro,
céu azul, silêncio,
como
lembro a tarde em que cruzaste
o leito seco do rio,
as tranças ruivas e longas,
os seios ainda dormindo
na blusa
e além: na infância.
Um dia recordarei
esta hora, estas palavras
que se escrevem leves como
a brisa, e com ela passam
para o jardim em que lembra
a minha alma
enquanto
tarda o tempo de esquecer.
CANÇÃO DE DEPOIS DE TANTO
a Roniwalter Jatobá
Vamos beber qualquer coisa,
que a vida está um deserto
e o coração só me pulsa
sombras do Ido e do Incerto.
Vamos beber qualquer coisa,
que a lua avança no mar
e há salobros fantasmas
que não quero visitar.
Vamos beber qualquer coisa
amarga, rascante, rude,
brindando sobre o já frio
cadáver da juventude.
Vamos beber qualquer coisa.
O que for. Vamos beber.
Mesmo porque não há mais
o que se possa fazer.
EXUMAÇÃO
a Paulo Espinheira
Não sei como tantas vastidões
couberam um dia nessa pequena
casca de osso
que o coveiro retira com as mãos nuas
e deposita na caixa de metal.
Penso nisto, enquanto ele,
exímio,
se curva mais uma vez sobre o caixão,
recolhe
tíbias e fêmures,
cúbitos e úmeros,
afastando as roupas corroídas,
vertendo o conteúdo das meias,
arrumando depois tudo
para a breve viagem
de túmulo a túmulo.
Leves ruídos na caixa,
enquanto caminhamos
pelos corredores dos emparedados.
Um som de apenas
asperezas.
E é só.
No entanto,
uma vez,
não sei como, cintilaram
galáxias
nessa pequena e frágil casca que conduzimos
entre outros inúteis objetos pessoais
deixados por aquele que partiu
para nenhum endereço.
CAIXA
Nem era mais lembrada esta caixa de metal
com um veleiro enferrujado na tampa.
No entanto, esquecida, não esqueceu,
como mostra, ao ser aberta,
nesta agenda com números de telefones
que soam na juventude
e nesta fotografia
de
pai, mãe, avó, sete meninos
sob um sol anoitecido há quarenta anos.
Não esqueceu. E se deixa
fechar novamente por quem sabe
que ela nunca mais se fechará.
HERANÇA
Rua Ramalho Ortigão, nº 1.
Ao longo dos domingos nos sentávamos
todos à mesa oval, bebendo para
que as Musas perdessem a timidez
e tomassem lugar ao nosso lado.
E elas baixavam, sempre, em meio à tarde
e ali ficavam até mesmo quando
só um restava ouvindo o que cantavam
as sereias no cálice de Porto.
Isto deixo aos meus filhos: esta herança
do que ocorria, em certa era, na
Rua Ramalho Ortigão, nº 1,
onde não há domingos há onze anos.
OUTRO DIA
Que tudo se vá
e não volte mais.
Nem como distante
névoa de lembrança.
Que tudo se finde
e só reste cinza.
Da autêntica — sem
trapaça de fênix.
PENSAMENTOS
Se eu morresse agora,
teria vivido menos 901 anos
do que Matusalém.
Matusalém foi o grande recordista,
batendo os 930 anos de Adão
e, por ordem cronológica,
os 912 de Set,
os 905 de Enos,
os 910 de Cainan,
os 895 de Malaleel,
os 962 de Jared.
Mas não bateu Matusalém seu pai,
bisavô de Noé,
Enoque,
que talvez ainda esteja vivo de alguma forma,
porque andava com Deus e um dia sumiu,
provavelmente para fazer andanças maiores,
mais altas e sutis,
no imponderável.
969 anos viveu Matusalém.
Vida longa, mas creio que um tanto vazia,
pois dele só nos contam,
tirante a ascendência e a descendência,
a portentosa longevidade.
E então, de repente, penso
que teria vivido 901 anos a menos do que ele viveu,
se morresse agora.
Sim, veio-me este pensamento estranho
nesta manhã sem nuvens.
O que, na verdade, não é estranho,
pois desde Eva se sabe
que não há necessidade nenhuma de nuvens
para que chovam sobre nós pensamentos
estranhos.
SONETO DA LUMINOSA RONDA
OU
UMA VISITA A MARIO QUINTANA
a Sérgio de Castro Pinto
E eis de volta a Memória, a de onde emana
a imagem da ruazinha sossegada,
já tão longe... Mas bela, enluarada,
como se fosse um verso de Quintana.
Como se fosse a alma de Quintana,
que meu pai revelou-me: emocionada
leitura; éramos jovens; constelada
a vida na poesia de Quintana.
E um dia apresentaram-me ao Poeta,
mas já o bem conhecia pela ronda
de aventuras vividas em discreta
cumplicidade. A luminosa ronda
em que ainda sigo meu pai e o Poeta
pelo vago País de Trebizonda...
SIMPLICIDADE
Prazer de ficar lendo,
ao longo da tarde,
um poeta simples.
Que não é menos complexo
do que um poeta complexo:
é que é complexo
de uma maneira simples.
Tão simples que os poetas complexos
não conseguem atingir sua simples
complexidade.
Procurando alcançá-la,
tornam-se cada vez mais apenas
complexos.
E então,
como não conseguem atingir a complexidade
de um poeta simples,
acusam o poeta simples
de simples simplicidade.
E assim ficam, com ares arrogantes,
destilando desprezo
pelos poetas simples.
E chegam a dizer até que não têm cabeça...
O que até pode ser verdade,
mas da mágica verdade da
Mula-Sem-Cabeça,
que,
não tendo cabeça,
solta fogo pelas ventas...
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