domingo, 11 de fevereiro de 2024

   RUY ESPINHEIRA FILHO, ESCRITOR E POETA

 Prosador fértil e multifacetado, dominando com igual destreza o conto, o romance, a crônica e o ensaio, Ruy Espinheira Filho é sobretudo poeta, somando, fora as antologias pessoais e participações em coletâneas e revistas, dezoito livros do gênero. No cenário atual da poesia brasileira, os versos desse baiano de Salvador têm cadeira cativa, graças à facilidade com que consegue comunicar emoções e sentimentos comuns a todos nós. Tido como o poeta da memória (pois pelo passado que, o mais das vezes, incursiona), é das perdas que tira a matéria-prima com que, de modo lapidar, trabalha. Sua impotência ante o correr irrefreável das horas (“Vamos beber qualquer coisa/ amarga, rascante, rude,/ brindando sobre o já frio/ cadáver da juventude.” — in Memória da chuva), a nostalgia crescente que o acompanha, à medida que tudo se lhe vai dissipando ao redor (“Tenho escrito muito nos últimos dias/ porque me têm procurado certos rostos e vozes.” — in Milênios e outros poemas), o assombro diante de si mesmo no espelho, se transformando, agrisalhando, envelhecendo (“Consulto o espelho,/ que apenas me fita/ criticamente.” — in Sob o céu de Samarcanda), mais que propriamente temas, são, em verdade, perspectivas sob as quais esse artífice da palavra elabora cada poema a cada novo livro, incansavelmente. Sobre o volume Heléboro, com que, em 1974, estreia Ruy Espinheira Filho, diz Carlos Drummond de Andrade: “Poesia concentrada e de sutil expressão.” Prognósticas, tais palavras, mais do que nunca, sintetizam o conjunto da obra poética desse grande lírico, reconhecido pela crítica e laureado, amiúde, com os mais importantes prêmios literários do país.

(Orelha do livro Vozes de Aço — XXII Antologia Poética de Diversos Autores)


POEMAS DE RUY ESPINHEIRA FILHO


OS OBJETOS

Os objetos
permanecem claros.
 
Habita a moldura
uma mulher de faces
cor-de-rosa.
 
Sobre a mesa de mármore
um cavaleiro de porcelana
saúda as visitas.
 
A caneta ainda escreve
com a mesma tinta
de um azul levemente melancólico.
 
Na gaveta, dormindo
sob cartas e poemas,
o revólver aguarda.
 
DIA DE FINADOS
 
Tantos são os abandonados
e caminham ásperos no silêncio.
Há os que rezam, os que choram,
os que se mantêm
                                      impenetráveis.
 
E todos depois retornam às casas, aos pequenos
mitos auxiliares de cada dia
sob o indiferente azul do céu.
 
As flores depositadas sobre as sepulturas
absolvem os mortos.
 
CAMPO DE EROS
 
Amor: esta palavra acende uma
lua no peito, e tudo mais se esfuma.
 
E testemunho: eis que Amor deixou
ferida cada coisa que tocou.
 
E tudo dele fala: a mesa, a cama
(como abrasa este hálito de chama!),
 
o bar, cadeiras, livros e paredes
vivem, revivem: de fomes e sedes
 
a corpos saciados. Tudo fala,
tudo conta. Só a boca é que se cala.
 
Amor. Do extinto pássaro, o voo
prossegue, inexorável. Mas perdoo,
 
eu, essa lâmina que me escalavra,
revolve em mim, em sua funda lavra,
 
amor, restos de amor, gestos quebrados,
enganos, mais amor, olhos magoados,
 
e fúria, e canto, e riso, e dança, e dor.
E a Quimera. E amor, amor, amor
 
por toda parte trucidado e em flor.
 
ULISSES
 para Valdomiro Santana 
 
O vento canta
                           o vento
canta
que ninguém volta
canta o
                       vento
em tua janela
em tua alma aberta sobre a
                                                    distância.
 
Este sal em tua boca
não é do mar
                                  sim
do lago em que submergem
teus olhos
                          porque sabes
que tudo é apenas
uma vez
como
              canta o vento
em tua janela
                            como
dói
em teu coração:
                                   que ninguém volta.
                                                                       Ítaca
é só de onde
se vem.  
 
ENQUANTO
 
Um dia recordarei
que aqui estive, assim, à brisa
de janeiro, folhas verdes
acenando sobre o muro,
céu azul, silêncio,
                               como
lembro a tarde em que cruzaste
o leito seco do rio,
as tranças ruivas e longas,
os seios ainda dormindo
na blusa
                      e além: na infância.
 
Um dia recordarei
esta hora, estas palavras
que se escrevem leves como
a brisa, e com ela passam
para o jardim em que lembra
a minha alma
                             enquanto
tarda o tempo de esquecer.
 
CANÇÃO DE DEPOIS DE TANTO
 a Roniwalter Jatobá
Vamos beber qualquer coisa,
que a vida está um deserto
e o coração só me pulsa
sombras do Ido e do Incerto.
 
Vamos beber qualquer coisa,
que a lua avança no mar
e há salobros fantasmas
que não quero visitar.
 
Vamos beber qualquer coisa
amarga, rascante, rude,
brindando sobre o já frio
cadáver da juventude.


Vamos beber qualquer coisa.

O que for. Vamos beber.

Mesmo porque não há mais

o que se possa fazer.

 

EXUMAÇÃO

 a Paulo Espinheira

 

Não sei como tantas vastidões

couberam um dia nessa pequena

casca de osso

que o coveiro retira com as mãos nuas

e deposita na caixa de metal.

 

Penso nisto, enquanto ele,

exímio,

se curva mais uma vez sobre o caixão,

recolhe

tíbias e fêmures,

cúbitos e úmeros,

afastando as roupas corroídas,

vertendo o conteúdo das meias,

arrumando depois tudo

para a breve viagem

de túmulo a túmulo.

 

Leves ruídos na caixa,

                                    enquanto caminhamos

pelos corredores dos emparedados.

                                                         Um som de apenas

asperezas.

                       E é só.

                                             No entanto,

                                                  uma vez,

não sei como, cintilaram

                                              galáxias

nessa pequena e frágil casca que conduzimos

entre outros inúteis objetos pessoais

deixados por aquele que partiu

para nenhum endereço.

 

CAIXA

 

Nem era mais lembrada esta caixa de metal

com um veleiro enferrujado na tampa.

No entanto, esquecida, não esqueceu,

como mostra, ao ser aberta,

nesta agenda com números de telefones

que soam na juventude

e nesta fotografia

de

pai, mãe, avó, sete meninos

sob um sol anoitecido há quarenta anos.

 

Não esqueceu. E se deixa

fechar novamente por quem sabe

que ela nunca mais se fechará.

 

HERANÇA

 

Rua Ramalho Ortigão, nº 1.

Ao longo dos domingos nos sentávamos

todos à mesa oval, bebendo para

que as Musas perdessem a timidez

e tomassem lugar ao nosso lado.

E elas baixavam, sempre, em meio à tarde

e ali ficavam até mesmo quando

só um restava ouvindo o que cantavam

as sereias no cálice de Porto.

Isto deixo aos meus filhos: esta herança

do que ocorria, em certa era, na

Rua Ramalho Ortigão, nº 1,

onde não há domingos há onze anos.

 

OUTRO DIA

 

Que tudo se vá

e não volte mais.

 

Nem como distante

névoa de lembrança.

 

Que tudo se finde

e só reste cinza.

 

Da autêntica — sem

trapaça de fênix.

 

PENSAMENTOS

 

Se eu morresse agora,

teria vivido menos 901 anos

do que Matusalém.

 

Matusalém foi o grande recordista,

batendo os 930 anos de Adão

e, por ordem cronológica,

os 912 de Set,

os 905 de Enos,

os 910 de Cainan,

os 895 de Malaleel,

os 962 de Jared.

 

Mas não bateu Matusalém seu pai,

bisavô de Noé,

Enoque,

que talvez ainda esteja vivo de alguma forma,

porque andava com Deus e um dia sumiu,

provavelmente para fazer andanças maiores,

mais altas e sutis,

no imponderável.

 

969 anos viveu Matusalém.

Vida longa, mas creio que um tanto vazia,

pois dele só nos contam,

tirante a ascendência e a descendência,

a portentosa longevidade.

 

E então, de repente, penso

que teria vivido 901 anos a menos do que ele viveu,

se morresse agora.

Sim, veio-me este pensamento estranho

nesta manhã sem nuvens.

 

O que, na verdade, não é estranho,

pois desde Eva se sabe

que não há necessidade nenhuma de nuvens

para que chovam sobre nós pensamentos

estranhos.

 

SONETO DA LUMINOSA RONDA

OU

UMA VISITA A MARIO QUINTANA                                                                                         

 a Sérgio de Castro Pinto

 

E eis de volta a Memória, a de onde emana

a imagem da ruazinha sossegada,

já tão longe... Mas bela, enluarada,

como se fosse um verso de Quintana.

 

Como se fosse a alma de Quintana,

que meu pai revelou-me: emocionada

leitura; éramos jovens; constelada

a vida na poesia de Quintana.

 

E um dia apresentaram-me ao Poeta,

mas já o bem conhecia pela ronda

de aventuras vividas em discreta

 

cumplicidade. A luminosa ronda

em que ainda sigo meu pai e o Poeta

pelo vago País de Trebizonda...

 

SIMPLICIDADE


Prazer de ficar lendo,

ao longo da tarde,

um poeta simples.


Que não é menos complexo

do que um poeta complexo:

é que é complexo

de uma maneira simples.


Tão simples que os poetas complexos

não conseguem atingir sua simples

complexidade.


Procurando alcançá-la,

tornam-se cada vez mais apenas

complexos.

E então,

como não conseguem atingir a complexidade

de um poeta simples,

acusam o poeta simples

de simples simplicidade.

 

E assim ficam, com ares arrogantes,

destilando desprezo

pelos poetas simples.



E chegam a dizer até que não têm cabeça...



O que até pode ser verdade,

mas da mágica verdade da

Mula-Sem-Cabeça,

que,

não tendo cabeça,

solta fogo pelas ventas...

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário