domingo, 11 de fevereiro de 2024

Antologia Poética

 Poesia da juventude

(in O invólucro da noitepoemas reunidos)

invólucro.png
UM QUADRO DA ADOLESCÊNCIA

Uma tarde (era o céu claro de anil,
eu me recordo...) vinhas (foi outrora,
quando tudo eram risos...); ia abril
no vento que gemia indo-se embora...

Trazias tu a face em luz envolta;
a alma trazias entre doce e queda;
fresca e macia, a pele — como a seda
que o ombro te emoldurava, mesmo solta.

Ao vento, o teu cabelo em proporção
parecia aumentar, e de tal sorte
que, à sua sombra efêmera, eu, então,
via das ninfas abrigar-se a corte!

O chão, sob os teus tenros pés nevados,
murmurava uma doce melodia:
— “Sou eu quem chega — ele repetia —
para ceder de novo aos teus agrados!”  

Tinhas de fato fundo o olhar em mim.
Fundo por mim teu coração pulsava:
mesmo distante eu o sentia, sim;
que estavas trêmula eu também notava...

Mas trazias-me um beijo e, nesse beijo,
toda a ternura de quem tem anseio;
e, nesse beijo, a estremecer, teu seio
quanto foi à minh’alma benfazejo!

E unidos num abraço, ó meu amor,
num arrulho de febre, nós, unidos,
pregáramos os olhos com fervor
sobre os serros além, intumescidos.

Tudo havia em redor, flores e árvores,
do monte mais remoto o negro cume,
ganho mais vida; e as pedras, como mármores,
brilho; a erva dos caminhos, mais perfume;

u’a alma os leques da palmeira ao sol,
entrecoberto agora por cortinas
de nuvens dissipadas, que ao arrebol,     
do dia ao raiar, presas, eram ruínas...

Ah! dizer posso, em meio a tal lembrança,
que era feliz e não sabia quanto,
como também dizer, sem muito espanto,
com naturalidade de criança,

que o hálito do vento a perpassar
pelo colo da relva, que tremia,
as pálpebras roçou-nos devagar
e deixou-te aos pés uma pet’la fria,

morta pet’la, que vimos nós, contudo,
da mesma forma, com a mesma beleza
da pet’la junto à flor posta na mesa...
que os olhos de quem ama não veem tudo...

1989

À SOMBRA DE UNS CIPRESTES


Ao redor de tuas pálpebras uma sombra cinza arroxeada falava-me
          [sem mistérios
da ânsia que já não continhas de, enfim, consumares o mórbido,
súbito, extremo gesto. E — molusco a que esmagaram a concha —
na concha de tuas mãos pequenas pousavas a fronte em febre...

Eras apenas uma criança, e porque talvez eu também fosse uma,
não articulava palavras que te fossem mais doces e que ao
          [pensamento te trouxessem algum alívio...
Mas eras assim, exatamente assim como essas flores que hoje
          [aqui te deixam,
e o teu peso mesmo, leve sobre a terra. 

1989

BÁLSAMO


É preciso que eu ande por todos os caminhos por que passaste — para
          [reconstituir-me.
É preciso que eu tenha da noite úmidas as pálpebras e pálido o
          [semblante,
e frio;
mas que lúcida em mim seja a tristeza e um tesouro oculte em seu
          [bojo.

(— Com perfume e pétalas existe uma palavra presa à minha boca
que se há de converter em pássaro trêmulo
que tomarei em minhas mãos por um segundo e depois soltarei para
          [que voe,
para que voe sempre...)  

1989


NOITE VELADA


Tirante o ruído de alguma folha seca arrastada um instante pelo vento,
de madrugada não se ouvem furtivos passos no lajedo.
Tudo é quieto e misterioso qual um mar parado — sob espessa névoa,
e o silêncio mórbido de cada gesto do poeta, insone,
une-se ao silêncio obscuro dos fantasmas do ermo...                                                                

1988

 

NOTURNO


Noite alta. Fora,
nenhum ruído. Só a aragem.
Fechadas as portas à chave. As janelas sem uma fresta. Não
          [assistem
os olhos do homem aos gatos no cio pelos telhados;
não ouvem seus ouvidos; nada
o perturba. Dorme,
entre as paredes que o protegem
do frio,
da noite,
do homem. Fora,
altas no céu as estrelas,
num canteiro pequenino,
em botão, uma flor
(altas, no céu, as estrelas...),

prenúncio delicado de que a vida
há de sempre renascer da morte.

1991

O ritmo da palavra 
— SONETOS PARNASIANOS —
(in O invólucro da noite/ poemas reunidos)


O CAMINHO

Dize a palavra que te encerre o sonho,
aquela que resuma o teu desejo;
evita aquela de pesar medonho,
aquela de lamento malfazejo.

Dize a palavra que te encerre o sonho
com a mesma intensidade do teu beijo!
Evita o murmurar insano, e põe o
teu pensamento a trabalhar, que vejo

que aquilo que dizemos é que é ouvido,
ainda que o façamos em segredo...
— Não há palavra sem repercussão!...

Na estrada em que o homem vai, tão comovido,
seja de sua pátria, ou do degredo,
antes, por ela, andou seu coração!

2000

  

CURSO D’ÁGUA


Serve ao amigo, e mesmo ao inimigo,
e a Deus é que estarás servindo então;
dedica-te ao amor, de coração,
de maneira que estejas bem contigo!

No rosto abre um sorriso, dando abrigo
ao semelhante, e canta uma canção
cujos versos despertem a emoção —
canção da tua vida, meu amigo!

Não te exasperes nunca, sê paciente;
e constante, e honesto, e sê fiel
a tudo o que o espírito procura.

Seja a tua existência, sob o céu,
qual curso d’água fresca e transparente,
matando a sede a toda a criatura...

19/3/2002

NOITE ALTA

Noite alta, de luar e arminho
a enfeitiçar o coração da gente...
Há flores alvas ocultando o espinho,
pétalas brancas indo na corrente...

Sombras de arbustos tremem no caminho
por onde vou, nem triste nem contente,
e onde reluz a areia, de mansinho,
e mesmo as pedras, muito docemente...

Oh! dorme, dorme à luz da lua cheia,
velada por uns poucos (e por mim),
a natureza o seu sono sem termo...

Uma folha, adiante, corcoveia;
e este barulho é o vento; e é o vento, enfim,
o murmúrio das almas pelo ermo...

Santa Rita de Jacutinga, 2003

VIGÍLIA

São horas. E o sono, que não vem?!...
E este querer roubar, de qualquer jeito,
ao limbo um verso que soe perfeito,
e a mim me emocione, a mim e a quem,

um dia, recostado ao parapeito
de uma janela, à noite, muito além
daqui, o leia... a suspirar também?!...
E este vulcão que há dentro do peito?!...

E esta vontade de expressar-me, tanta,
e que, contudo, morre na garganta?!...
E esta dor de oceano me saber,

batendo eternamente contra abrolhos?!...
E este mar todo que me sobe aos olhos 
se ao recôndito desço de meu ser?!...

2003


SOBRE A FORÇA INTERIOR


Há um ser dentro de nós, desconhecido,
que as coisas muda sem que nós vejamos;
que à nossa vida dá outro sentido,
contrário às vezes ao que desejamos.

Em nossa ignorância então levamos
para o alto a fronte, como que indignados,
ou baixamos os olhos, resignados,
e, sem estímulo, sequer sonhamos...

Tomemos nós, porém, conhecimento
de que à vida o outro sentido dado
deve-se ao fato de não ser obreiro

a favor nosso, então, o pensamento:
que muda em fato, esse ser ignorado,
o que tomamos nós por verdadeiro. 

1992

SONHAS COM AQUELA FLOR...


Sonhas com aquela flor que viste, um dia,
à beira do caminho, distraído;
e a procuras em vão, já dividido
o espírito... E a elevas em poesia!

Tornas a vê-la, e vês que o que existia
dentro em teu ser de belo está perdido:
diante da flor, teu sonho perseguido,
já não demonstras mesmo uma alegria.

Assim parece sermos: este chora,
sabendo inatingível o horizonte;
querendo a liberdade, entre grilhões

suspira aquele; e um outro há que, defronte
do mar aberto, ali não se demora,
que é de ilusão que vivem os corações!

8/6/2002

 

ESTRANHA NAU


Viva é toda palavra proferida;
vivo é, também, o nosso pensamento:
seguindo só seu curso obscuro e lento,
terá um porto a nau, no mar perdida.

Não se dispersará, triste — no vento,
tua oração, o teu amor, e a vida
há de resplandecer toda florida,
e, mais largo e azul, o firmamento.

Não é tão feio e tão medonho o mundo;
contempla, um só minuto, a natureza,
que foi criada pela mão divina!...

Atende apenas ao teu ser mais fundo;
e segue teu caminho, na certeza
de que é real a luz que te ilumina.

16/9/2002

 

URGÊNCIA


Sê verdadeiro, puro, transparente,
e tu te sentirás mais leve então:
sorriso franco, aberto o coração,
acolherás, no seio, muita gente.

É este o prêmio; a mudança, urgente!
Sê cristalino e verdadeiro, irmão...
Descalça os pés e a terra grata sente,
e o verde que, feliz, brota do chão.

Desprende-te de tudo e, enfim, liberto,
não te será o mundo mais deserto
e inatingíveis as regiões celestes!...

Desfaz-te desse instinto de defesa;
olho no olho, faz gestos de certeza,
e arranca os véus com que as palavras vestes!

1999

MATURIDADE

Tal como as estações, passam-se os anos,
ligeira, a vida, como as estações,
roubando a nosso ser as ilusões,
não o enchendo, porém, de desenganos.

Antes fazendo sóbrios nossos planos,
sensato o riso e mesmo as emoções;
fazendo ver, à luz, os corações
perdidos de desejos, mas tiranos.

Saibamos rir em meio da tristeza
como um rei, na alegria, não soubera,
sobriamente, sem dizer um ai...

Que um colorido há, de uma beleza
que se renova, finda a primavera,
que apenas dorme, quando a noite cai... 

2000

Vertigem
 (in O invólucro da noite/ poemas reunidos)

PROCURA


Se a Deus queres achar, não é preciso
que balbucies triste uma oração;
apenas que te afastes do tumulto,
em busca de silêncio e de harmonia.
Vai ao encontro de ti mesmo, vai!
A natureza, do Criador reduto,
está ao teu redor, basta que vejas,
que tenhas olhos para o que é perfeito.
Vai ao encontro de ti mesmo, em paz,
os pés descalços sobre a grama verde,
cabelo ao vento, a face à sombra densa
das árvores frondosas do jardim.
Não é preciso que tu digas nada
(mais vale teu silêncio interior!),
antes escuta os sons da natureza:
o pássaro que pousa no seu ninho;
a frágil folha seca que se deixa
arrastar pelo vento que murmura;
gotículas de chuva que não vem,
fremir de asas de insetos pequeninos,
e abelhas brancas a voarem no ar...
Não é preciso que tu digas nada,
antes escuta a voz da natureza,
que é a voz de Deus a te dizer baixinho,
a te dizer, quase que segredando,
que não habita os templos suntuosos;
trono não tem, nem chega a ser um rei;
vive a teu lado, e tu nem te dás conta;
que te conduz no escuro e te protege;
que a mão te põe no ombro, e não percebes;
que está na flor que se abre e te sorri,
mas que arrancas à haste e atiras fora. 

À HORA DAS AVE-MARIAS


O dia se despede. A sombra avulta...
A beleza plácida e triste dos entardeceres fere os meus olhos baços,            
          [entranhando-se em meu peito.
Eu quisera contar como vêm despontando as estrelas geladas;
quisera inspirar-me nos astros distantes e sorver o mistério do
 [universo, a graça que palpita em cada corpo celeste;
quisera inspirar-me nas flores ao alcance de minhas mãos e sorver a
           [mágica do mundo, o segredo que pulsa
           [em cada vida sobre o deserto,
sob as matas e junto às rochas, às margens dos rios e à flor de suas
  [águas, e lá no fundo delas;
e dentro do mar e no céu acima dele;
quisera inspirar-me nas vagas sobre que se debruça a asa escura da
 [noite e deixar-me ir, e deixar-me ir
 [ao sabor dos pensamentos...

Natureza,
minha voz se cala para eu escutar-te,
minhas pernas seguem teu rastro instintivamente,
meus olhos abrem-se para que eu te contemple em paz e, através de
[ti, chegue a Deus;
minha solidão abre-te os braços numa espécie de êxtase,
e és, então, meu próprio espírito
— liberto.

NOITE NO CAMPO


Eis o luar pelas quebradas fora,
prateando o ermo, a solidão, a noite.
Gelado passa o vento pelo rosto
daqueles que se vão pelos caminhos.
E aqueles cujo sono chega tarde,
nas janelas, debruçam-se absortos,
talvez vendo o luar pelas quebradas,
prateando o ermo, a noite, a solidão.
Há pouco rindo sob o olhar materno,
sonha agora a criança um sonho doce,
cheio de anjos a brincar de roda,
vestes colegiais, num pátio azul.
Qual se orvalhasse os sonhos a tristeza —
a tristeza da noite — noite adentro,
deixa-se a alma levar, deixa-se lânguida
levar, perdida em pensamentos, longe...
Pia à beira da estrada uma coruja,
e a escutamos quase por acaso.
Gelada corre a aragem devagar;
recende a murta no jardim da casa.
Perfume e nostalgia emanam flores;
escondem folhas verdes o alvo ninho.
E as impressões nos vêm como segredos,
e as sensações nos vêm num acalanto.
A noite, amiga minha, é sugestiva,
tal como é mansa a voz com que me falas,
tal como é branco o branco do teu busto,
como são vagos nossos sonhos tristes.

Passa Vinte, outubro de 1999

Nau submersa
(in O invólucro da noite/ poemas reunidos)

invólucro.png

INSISTE A PRIMAVERA

Insiste em florir a primavera, abrir-se em flor pela cidade;
sob um céu baixo de fumaça, onde espaçadamente voa um pássaro,
insiste em florir a primavera.

À tímida margem dos caminhos
em que nossos pés estraçalham às vezes um inseto,
junto ao verde que viceja pelos canteiros onde dos répteis e roedores resta apenas o silêncio,
a primavera, em florir, insiste. (E não nos daremos conta?)

Demarcamos como nenhuma outra espécie nosso território.
Nossa presença a tudo afugenta.

Metálica é nossa voz e altivos caminhamos por esta selva de pedra,
alheios mesmo à mensagem clara e profunda
que é a das flores.

Primavera de 2006

LEGADO

Na solidão das cidades
homens de vida amarga trabalham ao sol. Fatigados de mentiras,
sabem que pouco deixarão aos filhos — um tanto
de incertezas, a dura rotina, privações (seu legado de miséria).

27/11/2004

DIAS E NOITES

Dia após dia, noite após noite, cada
instante, o homem luta por espaço,
guerreia pelos seus e lágrimas
verte, e estanca o sangue, e come o que
lhe é servido (grande
é seu padecimento);
sua perseverança, porém,
é o seu estandarte; flâmula ao vento — a sua fé,
com a qual
não desmorona, com a qual
é sentinela de si mesmo.

11/9/2005

ATRÁS DO PÃO, DE TRABALHO

Firme, segue o homem para as grandes cidades
atrás do pão, de trabalho, do estudo da prole,
da subsistência afinal; e já não importa
seja da serra, do sertão ou do pampa:
funda-se na nova terra, doce e amarga
como se fora a própria, ou não
— porém onde, de seu viver,
se edificam as colunas;
onde se faz, mais que fumaça:
raízes.

4/9/2005

MOMENTO

Pela manhã, de céu claro
ou cinza, ou pela tarde
rumorosa,
ou na quietude da noite,
povoada de estrelas ou erma delas,
por um instante, não mais,
que os nossos olhos se voltem para o alto,
e que reflita — cada coração: que há frio, que há fome.
E, generosamente, o pão seja partido, e a veste
que já não sirva para este ou para aquele
possa cobrir o ombro nu.

Páscoa, 2004

NÃO QUE TENHAMOS SIDO CRIADOS

Não que tenhamos sido criados à imagem e semelhança de Deus,
e nos tenha sido legado o domínio sobre as demais criaturas;
creio — isto sim! — nesse dom concedido,
que é o da sensibilidade.

De divino, em nós, é o fascínio que nos desperta mesmo a flor mais singela.
Admito a existência de uma alma até num ramo. E no vento,
que, ao ramo tocando, murmura e, murmurando, conosco se comunica
— intimamente.

2006

PARATY

Praia do Pontal. Abril farfalha. Garças
são, à beira do canal, meros pontos brancos.

O ar lavado, onde uma borboleta adeja,
é, ao meio-dia, mais azul. No mar,
pequenos barcos
somam-se a uma paisagem de cartão-postal.

2006


O invólucro da noite

(in O invólucro da noite/ poemas reunidos)

DO AMOR EM NÓS


No chão de minha alma têm se aprofundado as raízes desta paixão
[esquiva,
mais voraz quanto mais esquiva, e que cresce em meu corpo como a
[hera no muro;
e que sobe por meu peito até a boca, rebentando em pétalas;
e que corre como sangue por minhas artérias;
e que meus poros transpiram às vezes e, às vezes, me causa espasmo.

Como me têm espelhado os sentimentos estes céus vespertinos desde
[que me pus a observar-te. Estes
céus castanhos e profundos de tardes de primavera tão parecidos a
[teus olhos doces!
E tenho achado infinitas as sombras dos casebres pelo subúrbio,
como a sombra amena dos flamboyants, com suas copas esparramadas
[sobre as ruas preguiçosas.
Como infinita acharia agora a espuma branca das ondas do mar se
[jogando sobre a areia inumerável.
E infinitos se acham os pássaros em sua migração. E a semente
[atirada a distância
pelo vento. O vento mesmo, assobiando nos beirais das construções
[antigas.
É a magia do ser renovado, a qual a tudo envolve e toca com seu
[rumor tão próprio.

Que propícia a chuva, porque te amo! Que belas
as margens verdes dos rios, os rios e suas desembocaduras, o inseto
com seu fremir de asas pequeninas, o ninho escondido
entre os galhos de um arbusto, se há amor. E o fósforo riscado,
as chamas azuis de uma fogueira crepitando no quintal,
o lenço que nos enxuga o suor da fronte, o diálogo trêmulo dos gestos.
[As coisas mais simples,
como os chinelos deixados à entrada da cozinha;
o chiado de um pequeno rádio de pilha;
o traje novo posto a um canto do quarto; uma janela aberta;
o tique-taque monótono do relógio; o ranger sugestivo de uma porta;
o entreolhar-se das pessoas. O rosto sombreado
de alguém que sequer conhecemos, com quem nunca tivemos contato,
em uma fotografia na parede, o qual a um tempo esquecido nos
[remete...

Como tão mais próximas me têm parecido, desde que notei tua
[presença, 
as nuvens que rumam para o crepúsculo.
Como tão mais íntima a música que ouço. E inefável
a poesia surgindo súbito no papel.


E que altas as montanhas ao fundo das casas,
e que intensas as palavras saltando do peito,
e imensurável um último raio de sol atravessando a folhagem de um
[pátio qualquer!
E tudo! E tudo! Que amor
o de todo o homem!

2004

POETA É AQUELE QUE VÊ

A Marcio Marinho Nogueira

Poeta é aquele que vê
o belo e o feio do mundo;
que capta, com suas antenas,
toda a essência das coisas
e em seus versos a traduz.
Poeta é aquele que sabe
colher com seus dedos longos,
pelas margens dos caminhos,
flores, e ninhos, e salmos.
Poeta é aquele a quem cabe
distribuir os seus dons
e que, à sombra ou ao sol,
fiel às aspirações,
faz aos poucos uma história.
Poeta é aquele que crê
e proclama esta verdade:
só o amor tem fundamento;
o ódio, a cobiça, o ciúme
não têm, não, razão de ser.
Poeta é quem dá, afinal,
través daquilo que escreve,
das palavras de sua boca,
água a quem reclama sede,
pão a quem lhe diz ter fome,
o que cobrir ao que está nu,
e flores — a este, àquele —
flores a toda a gente,
indiscriminadamente,
mesmo a quem, ah! sobretudo
àquele que lhe atira pedras.

29/8/2006

BERÇO REVISITADO

Por entre flores de jardim, e arbustos,
por entre bustos, e bancos de praça
e chafarizes, volto enternecido
ao passado, em que, ingênuo, folheava 
revistas e jornais, buscando atento
tesouros da ficção: mitos e heróis;
e, pelas salas de aula e pelos pátios,
a vida soletrava e, onde estivesse,
algo encontrava que me distraísse,
que houve um tempo em que em mim tudo aspirava
a alegria e a entretenimento:
os meus dias felizes de criança,
plenos de sol e de imaginações.
À terra em que se nasce retornar
é reviver momentos. Ruas, casas,
mesmo esquinas parece que nos falam
de tudo quanto um dia nos foi caro;
e parece conosco relembrarem
aquelas doces horas encobertas,
levadas pelo turbilhão do tempo,
como a poeira densa dos caminhos
pelos ventos. E como me despertam
a memória estas ruas sossegadas,
estas casas e esquinas do passado,
o soberbo relógio da matriz,
as portas entreabertas dos mercados
(as mesmas cores conservando ainda!),
e os cães vadios à porta dos açougues,
os pombos, na calçada, distraídos,
e a hera pelo muro centenário!...
Ah, voltar ao torrão em que nos criamos!
Tudo nos lembra um pouco o que nós fomos,
tudo desperta em nós uma saudade!
Ó céu de primavera que diviso,
flores simples à beira das estradas,
gorjeios que eu escuto comovido!
Ó Capela do Alto, ó meu cruzeiro,
ó sobrados, colinas, campos, pontes
precárias resistindo ao tempo, ó rios,
rios de minha infância, em cujas águas
em sonho eu, menino, inda me banho!  

6/11/2004

METALINGUAGEM


Quando a inspiração nos chega,
as metáforas buscamos:
por esta ou aquela palavra,
são mil outras que empregamos.

No poema, não se sente
o aroma, que este se bebe;
flor não se vê, se imagina
num jardim que se concebe.

Na canção, não se sacia
a sede com a água das fontes;
a sede de que se morre
na canção é de horizontes!

Ah! no poema, não se segue
mudo, aos prantos ou contente,
empós da alvorada, porque esta
vem-nos a nós simplesmente.

No poema, as mãos se abrem
para apanhar o universo;
e multiplicam-se os peixes
pelo milagre do verso!

No poema, as cores são muitas,
ainda que em preto e branco —
este, ao fundo, do papel;
se firme, aquele, ou se manco

(que importa!), da tinta, pouca,
para a inspiração, tamanha,
que às vezes, tal como a fé,
move mesmo uma montanha.

25/12/2004

 

DESCONHECIDOS DE SI MESMOS


Dentro de bares, ao volante, pelas ruas,
homens se desconhecem, desentendem-se,
se olham com ódio e se rosnam,
e se insultam,
ou se olham com desprezo, fechados em si mesmos,
alheios muitas vezes ao que há de belo à sua volta,
a tudo aquilo que, de bom, reside nas coisas mais simples;
e a vida humana então se torna um fardo,
e esta existência então é um tédio, é angústia, é solidão e morte.

Não, não é o muro que nos tapa a vista à paisagem,
mas nossa vista que a si mesma se tapa;
não são os pássaros que já não cantam,
mas nós que já não os ouvimos;
não é que já não haja mais gestos de cortesia, é que apenas
esperamos por eles, esquecendo-nos de que sua prática é recíproca,
e de que um primeiro gesto talvez devesse partir de nós.

Dentro de bares, ao volante, pelas ruas,
concentrados e sós estão os homens.
Como resistem a um sorriso!
Conquanto seja grande o burburinho da cidade,
como que estão, na verdade, taciturnos,
atrás nem mesmo sabem de quê!

Sobre os telhados das casas, contudo,
e junto aos pombos no chão da praça, e no verde viçoso das folhas
[das amendoeiras,
o dia, generoso, resplende.

21/12/2004


ACERCA DA MORTE

(PARÁFRASE)


Ó morte, tua presença é suave para o indigente, cujas forças 
se esgotam, para quem está no declínio
da idade, carregado de cuidados...

           ECLESIÁTICO 41, 3

Àquele que em casa
a mesa tem farta,
de mil iguarias
provando diário,
melhor que se diga
— se empanturrando;
àquele que dorme
na cama macia
de um quarto arejado
e tem sonhos bons,
povoados de anjos,
a morte é agravo,
e dói pensar nela.
Porém a sentença
de morte nem tanto
é amarga e cruel
ao desenganado
a quem mesmo um gesto
a doença lhe tolhe;
e àquele que se acha
no leito entrevado;
e ao velho que treme
nas noites de frio
sem doces palavras,
presença de um filho,
e, sem paciência,
blasfema e lastima,
— a esses a morte
não ceifa, acolhe.

7/5/2007


O DIA CUMPRIDO

 

Sombras como que escorridas
pelas pedras das calçadas;
as sombras como que líquidas, 
ah! como que derramadas;
do café o cheiro morno
no vento, como, espalhadas,
as folhas mortas de outono,
as folhas como almas penadas;
o enorme espectro das árvores
a assustar as alimárias
na penumbra que descora,
torna exangues flores várias;
como se do céu descessem,
os tentáculos da treva;
o rastro viscoso das lesmas
como o rastro de nós mesmos,
degredados filhos de Eva;
casas em redor da praça,
pelas íngremes ladeiras,
humildes umas, pomposas
outras, casebres, sobrados,
e, em seu interior,
mais que um arranjo de rosas:
um ranger triste de porta,
alguma coisa que cai,
uma lâmina que corta,
— sobre a cômoda, o retrato
antigo, de alguém, talvez,
que, tendo partido desta,
ao ninho torna outra vez;
ou antes parece que volta,
mas se dissolve antes que
uns lábios o busquem no ar,
e, fora, o ermo, que ri;
a dor da gente cansada;
a mágoa do entardecer;
o emudecer das cigarras;
de todo aquele que sonha,
de todo aquele que canta,
ainda que cante à toa,
ainda... que sonhe em vão;
o apito de um trem na estação,
onde se embarcava outrora;
o sino a carpir solitário
quem sabe o próprio fadário,
à hora em que, findo o dia,
a noite se forma e agiganta,
cobrindo o mundo e o que — nele,
ao homem seduz e encanta,
enquanto crescem as raízes
fatais da melancolia.

2005

Recado
— SONETOS PARNASIANOS II —
(in O invólucro da noite/ poemas reunidos)


DESALENTO

Não são os meus sentidos como antes
(ou o meu ser talvez que haja mudado):
que o mesmo não me é o descampado,
nem mesmas as colinas verdejantes!

Embora na estação das tão fragrantes,
risonhas flores a se abrir no prado,
e sobre escarpas, e por todo lado,
e em que chilreiam os pássaros amantes,

ai! tudo, me parece, se amesquinha:
não têm os lírios do caminho aquela
magia que a menor das flores tinha;

e o ruidoso chilrar da passarada,
da alegre passarada tagarela,
por mais que diga, diz-me quase nada! 

Santa Rita de Jacutinga, 2008

VER O PASSAR
SERENO DESTE RIO...

Ver o passar sereno deste rio,
em que alegres brincávamos outrora,
numa algazarra que jamais agora
pudéramos fazer, que é só fastio

o espírito; e o coração, num calafrio,
sabe: não torna atrás o dia, à aurora
sua. Antes avança para o cais sombrio
da noite, onde se aquieta, aonde ancora...

Ver este rio (de surpresa, a esmo)
cujos perigos conhecemos juntos,
é a nós próprios vermos, todavia

través da névoa de dias defuntos;
é verdes vossa sombra; é — me arrepia —
deparar com o fantasma de mim mesmo!

Santa Rita de Jacutinga, 2008

SONETO DA ROSA

Manhã de vento e pássaro, radiosa.
Vais à janela e vês, em seu frescor,
salpicada de orvalho, a cor, a cor
dum vivo que é sem-par, altiva rosa.

Ter uma rosa no jardim, viçosa,
é mais que ter apenas uma flor;
é ter algo de ordem superior,
cousa qualquer mais que misteriosa.

Ter uma rosa no jardim é ter
o que, efêmero embora, aspira ao eterno,
pelo que nela há de espiritual,

sempre a lembrar-nos de que, em cada ser,
arde a chama da vida, e é tão terno
— a consumir-se a si mesmo  fogo tal.

PELAS SOMBRAS

Errante vais pela floresta escura,
de obstáculos, perigos, vencedor;
atrás de algum tesouro é de supor,
para farta e melhor vida futura.

Do que se passa, enfim, nessa procura
obstinada, ninguém é sabedor.
Que seja desvario, ou o que for,
jamais o saberá outra criatura.

Só se sabe que vais pela floresta,
esta — da vida, densa e encantada...
Que te julguem um ser de ambições cheio;

em que busques bem menos é que creio:
— ver de espessa folhagem pela fresta
o resplendor talvez de uma alvorada!

ANJOS, GNOMOS, ORA...

— “Os pés no chão devemos ter”, nos falam
a todo instante, a sós ou em meio à gente;
e, ao nos falarem, outra cousa calam
lá dentro em si, melancolicamente.

Sonhar é próprio d’alma. Inutilmente
hão de ceifar as ervas, que se enlaçam,
e hão de cercar as águas da torrente
os que só às estátuas se comparam.

— “Não é nossa existência um acalanto;
e anjos, gnomos, ora, tudo é mito”,
vós me direis, redondamente certos.

E, mesmo ciente disso, inda me encanto?...
É que, se um sonho sempre me permito, 
é, afinal, por sonhar de olhos abertos!

NESTE PLANO SE CORRE...

Neste plano se corre atrás de alguma
coisa que nem se sabe exatamente;
e o ser por este ou aquele lado ruma,
e se envereda e perde de repente.

Feliz, portanto, aquele que, prudente,
pondera aqui, medita adiante, e em suma,
com uma leveza, diga-se, de pluma,
sobre suas dúvidas paira, sapiente.

Perfil de vencedor, nessa corrida
a que chamamos simplesmente vida,
não tem o de mais vulto e mais ruidoso,

que os pés crava no chão, causando abalo.
— Antes é vencedor quem, cauteloso,
no chão mal roça as plantas, a sondá-lo.

NO CÉU DE ESTRELAS ERMO...

No céu de estrelas ermo ou orvalhado,
numa noite em que venta, misteriosa,
procura o homem, como embriagado,
alguma coisa estranha, vaporosa.

Na luz do dia, branca e dadivosa,
nas flores que se espalham pelo prado;
na doença cruel, infecciosa,
no suspiro do peito enamorado...

O homem, em tudo o que há, em ver insiste
um brilho diamantino ou, inda que triste,
a resposta àquilo que o enfadonha;

quando é dentro de si que, todavia,
a joia rara existe, com que sonha,
e o lenitivo ao mal que o crucia.


Frêmito

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NO ESCURO

Noite. Sobressaltado desperto.
Todavia, não cessa o sonho.
Além do sono prossegue. E, certo,
não menos me aflige e é medonho.

SETEMBRO

Sol a pino. Ondas em atropelo.
E nuvens no céu, a falar
do que se renova, e que é belo,
e se espelha, enfim, em cada olhar.

DESPEDIDA

Tu quem decidiste.
— Nossas são as escolhas!
(No vento, quão triste
o rumor das folhas...)

SABEDORIA

Gastas teu tempo com perguntas vãs,
às quais sempre terás vagas respostas.
Sem meditar em quem tenha boninas
por vales espalhado e por encostas,
quem tenha feito as coisas de que gostas,
e quem as que renegas e abominas,
goza a beleza das virgens manhãs!

OLHANDO A CORRENTE

Olhando a corrente,
põe-te a refletir:
assim, simplesmente,
tão naturalmente
deixando-se ir

alegre e sonora,
sem imposição,
não cumpre, embora
o não saiba, agora,
a sua missão?

Por um só momento
à corrente igual,
sob o firmamento
te fosses, isento
do bem e do mal,

e te cumpririas
— tal a fonte a passar —,
sem hipocrisias,
ranços, ironias,
que baço o olhar

te deixam um pouco,
e os passos, a esmo,
e teu grito rouco,
e a ti, se não louco,
estranho a ti mesmo.

TORMENTA

Ao tufão inesperado
da sugestão negativa,
o peito é mar agitado,
a mente, barco à deriva.

CONQUANTO SEJA
A HORA TENSA

Ainda que a dor, imensa,
te fira como uma espada;
e, em súbita emboscada,
o inimigo ora te vença;

ainda que a tua crença
esteja, enfim, abalada;
cara que seja, a presença
de um irmão não tolerada;

conquanto seja a hora tensa,
e a tua alma, entrevada,
não faças menor ofensa
ao céu, à vida e a nada.

Parece-te a noite extensa?
Bem sabes: breve é passada.
E a bruma, por mais que densa,
dá vez à luz da alvorada.

A TEMPESTADE ACALMADA

Naquele dia, à tardinha:
“Passemos ao outro lado —
é aos discípulos falado,
porque a noite se avizinha.”

Estes despedem então
o povo ali aglomerado.
E Jesus é transportado;
trás do Seu mais barcos vão.

Súbito, uma ventania
inclemente, com tal ira,
contra tais barcos atira
as ondas. De água os enchia,

mas a Jesus, que dormira,
os discípulos clamaram:
“Mestre, as águas se agitaram;
grande do vento é a ira!

Salva-nos! Rabi, Rabi!”
“Tendes vós tão pouca fé —
respondido eis que lhes é,
não temais, estou aqui!”

Jesus então se levanta,
repreende mar e vento:
“Cessai!” E nesse momento
torna a paz, e como é tanta!
           __________

Por mais confiante o homem, pleno,
ser como Cristo quem há de,
que, em meio da tempestade,
no barco vai tão sereno?

CAMINHO DO CAMPO

Caminho antigo...
(De um sino, o dobre.)
A pé ou sobre
o dorso amigo

de uma alimária
lento se vai.
(A tarde cai.)
’Strada precária.

’Strada de chão...
Quão fundo cala
no coração
quanto nos fala!

Que nos diz ela
muito de nós;
levanta os pós
da infância bela...

Sequer notada,
a beija a aragem.
(Medrar do nada,
calma paisagem.)

E eis nos fascina,
à alma invade
a suavidade
duma bonina!

’Strada da roça...
Lições de fábula
e de parábola.
Volta a carroça,

leve, saltando
(e não é que chia
mais do que quando
cheia há pouco ia?).

Ao fardo, enfim,
que suar nos faça,
digamos: sim.
Seja-nos graça!

Do ócio nos lodos
não nos rocemos.
Antes, que todos
nós labutemos.

Contudo, nunca,
nunca em razão
da garra adunca
do medo vão.

O que vestir, o
que comer possa,
— algo retiro
ao que se me esboça:

ante o esplendor,
a poesia
da menor flor,
e a alegria

das estouvadas
aves dos céus,
que, tendo nada,
as provê Deus.

A LANÇA EM RISTE
E AJEITADO O ESCUDO

A lança em riste e ajeitado o escudo,
à tua frente, o campo, que supões
de batalha, onde sangue encharque o chão...

Que te pareça um inimigo tudo,
este é sabido que não há senão
em ti, no que te vai no pensamento;
nesse, que a ti te agita, interno vento
do medo, que gigantes faz a anões.

FERA ACORDADA

Quem contra Deus e o mundo vocifera,
a jogar farpas para o alto e a esmo,
não vendo no seu ser, bizarra, a fera,
mais que ao próximo, estranho é a si mesmo.

A UM ILUDES,
E A OUTRO

A um iludes, e a outro, e outro. Cá
      iludes, adiante, a esmo;
e assim mentindo, astucioso, ah!
tu sobretudo iludes a ti mesmo.

NUM “DIA DOS PAIS”

Que os homens manifestem alegria
ante a beleza dos jardins em flor,
dos frutos a pender dos galhos, das
aves em festa, diante da magia
de quanto exista e em si traga esplendor;

mas corajosos sejam em horas más,

quando os mesmos jardins forem deserto,
e das árvores frutos não restarem,
talvez nem mesmo folhas ou algum ninho,
e as aves não cantarem mais por perto,
ventos tristes, enfim, assobiarem

em noites negras, sem luar de arminho.

Que os homens manifestem seu encanto
ante a algazarra pueril na estrada,
ante uma mesa farta, o sono bom
de um pequerrucho ao som de um acalanto,
e ante uma nova vida anunciada;

a face não contraiam ou mudem o tom

de voz, porém, se um choro é que se escuta
em lugar de algazarra, e, pouco, o pão
careça de que seja dividido,
e a noite não pro sono, para a luta
se faça, longa e, às vezes, sem razão,

a própria vida, um’hora, sem sentido...

Na meninice, façam estripulia,
brinquem de pique, saltem, se lambuzem,
e que em riachos nadem, os havendo,
que tudo é efêmero, e se até diria
que, como à noite no céu astros luzem,

saudade é um astro (quanto isto eu entendo!)

n’alma do adulto, trêmulo, a luzir;
se isso, entanto, possível não lhes for
(nem sempre é!), lhes valha o pensamento:
“se sujem, dispam, suem” ao subir
à imaginária escarpa ao fim do corredor,

e, como ao natural, gozem um momento...

Na juventude, que eles para tudo
os braços abram, e força não lhes falte
(o mundo lhes estenda os seus também),
que seu vigor lhes seja como escudo,
e a frustração não sofram de um nocaute,

dizendo a um infortúnio antes: — “Amém!”;

mas também saibam enfrentar com tal
coragem, da velhice, o que lhes vem;
o verem-se, inclusive, verem-se, ai,
rosto abatido, informe, espectral,
já quase sós, e, sobretudo, sem

a quem recorram e dizer possam: — “Pai.”

Tempo de reencontro
(in Tempo de reencontro)


PARÁBOLA DO SERVO CRUEL

Se teu irmão pecar, repreende-o; se se arrepender, perdoa-lhe. Se pecar sete vezes no dia contra ti e sete vezes no dia vier procurar-te, dizendo: “Estou arrependido”, perdoar-lhe-ás.
                     LUCAS 17, 3-4

Por isso, peço ouvi atentos:
dos Céus o Reino é comparado
a um rei que quis com os servos seus
ajustar contas. Começado

o ajuste, eis que lhe trouxeram
quem lhe devia uma quantia
considerável; que à mulher,
aos filhos, bens comprometia,

e a ele próprio. Não podia
pagar-lha, pois, senão com prazos,
o que a esse rei pediu de joelhos,
os olhos mesmo d’água rasos.

Piedade tal ele inspirou,
que o rei a dívida e o mais,
lhe perdoou, deixando-o ir,
deixando-o ir, enfim, em paz.

Contudo, mal tendo saído
da real presença, não é que ele
entre outros seus iguais achou
coincidentemente aquele

que lhe devendo vinha, perto
do que ele ao rei devera embora
fosse em verdade muito pouco
ou mesmo nada, nada! Ora,

não parte ao pobre em direção
e o agarra! Agarra-o e, a estrangulá-lo,
já esquecido de que estava
minutos antes em igual, oh!, 

situação, grita-lhe o injusto:
“Paga o que deves!” E o infeliz,
também os olhos rasos d’água,
muito humilhado, ao cruel diz:

“Dá-me mais prazo, e te darei
capital, juros. Compaixão!”
Sem, entretanto, dar-lhe ouvido,
fez que o lançassem na prisão.

Tal presenciando, os demais servos
profundamente tristes vão
contar ao rei o acontecido.
Manda o chamarem este, então,

e, uma vez mais, ao homem tendo
diante de si: — “Como que à tona
o mal que há em nós não é que vem
— a forma como agiu questiona —;

tu me devias, perdoei-te;
justo era, pois, como ninguém,
de outrem assim compadecesses
por te dever igual também,

no entanto ages com rigor”.
E, enraivecido, o rei havia
pouco tão-só perdão, o en-
trega aos algozes. Saberia

algum de vós essas palavras
com que vos brindo interpretar?
Que há de o Pai celestial
assim a vós também julgar!

Nada mais diz e nada encerra
essa parábola, senão
que se condenará quem não
perdoar de todo o coração!

A SORTE E O VIAJANTE*

Por seguir caminho,
sem se conceder
que seja um repouso
ou mesmo alimento,
um tanto andrajoso,
o peito ofegante,
eis súbito prostra-se
e, bem rente a um poço,
tomba o viajante.
Por ter-se apagado
ali nosso moço,
em um movimento,
o de se virar,
n’é que poderia
então despencar!
E, se isso se desse,
no mínimo, mínimo,
não se feriria?
Devido ao iminente
perigo, a Fortuna
dele se aproxima,
desperta-o e diz-lhe
mui sabiamente:
— “Tivesses caído
aí dentro, por certo,
não te culparias,
nem à teimosia
tua e ao cansaço
do teu pobre corpo;
a mim tão somente
incriminarias.”

Na infelicidade,
ao destino sempre
atribui culpa o homem,
e nunca às nefastas
escolhas que faz,
aos vícios (jamais),
de que não se basta,
e tanto o consomem!

Na dor, entre ultrajes
e injúrias a esmo,
à sorte ele culpa,
e nunca a si mesmo.

___________________
* Esopo (adaptação)

EM CASA DE ZAQUEU

Pois o Filho do homem veio procurar
e salvar o que estava perdido.
                            LUCAS 19, 10

Entrou Jesus em Jericó
e entre o povo caminhava.
Havia aí um homem rico,
era Zaqueu que se chamava.

Dos que impostos recebiam
ele era o chefe, o que fazia
com que as pessoas o evitassem,
desses que a gente repudia.

Curiosamente esse homem, em meio
àquela imensa multidão,
ver a Jesus tão só buscava;
e, porque seu tamanho não

o ajudava, ele tratou
de uma saída encontrar:
a um sicômoro subiu,
donde ele a Cristo pôde olhar.

Este, notando-o, pede que
desça depressa, que escolheu
por teto sob o qual passar
ali aquele dia o seu.

Zaqueu, então, a toda a brida,
descendo ao chão, faz que o siga
e, co’a alma cheia de alegria,
da casa lhe abre a porta e o abriga.

A isto vendo, dizem todos:
— “Deixa-se estar com pecador?”
Zaqueu, entanto, humilde, fala
de pé diante do Senhor:

— “Aos desprovidos, de meus bens
darei metade. E, tendo, enfim,
eu defraudado alguém, o quádruplo
restituído vá por mim!”

Ao que, propósito alcançado:
— “Hoje aqui entra a salvação —
diz-lhe Jesus —, porquanto em ti
eis vejo um filho de Abraão.”


PARÁBOLA DO JUIZ INÍQUO

(PROPOSTA POR JESUS
AOS SEUS DISCÍPULOS)

   Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á. 
Pois todo o que pede, recebe; o que busca, 
encontra; e a quem bate, abrir-se-lhe-á. 
                                                 MATEUS 7:7-8

Uma parábola propôs-lhes
sobre o dever de orar, orar
sem se cansar, desfalecer;
assim se pôs Cristo a falar:

“Havia, em certa cidadela,
iníquo juiz, que não temia
a Deus nem nada respeitava;
e uma viúva, que com ele ia

constantemente ter, justiça
pedindo contra um inimigo.
Por algum tempo ele atendê-la
não quis, porém depois consigo

pensou: — ‘Não temo a Deus, jamais
respeito tive por ninguém;
como essa viúva me incomoda,
como aborrece-me, pois bem:

hei de fazer-lhe enfim justiça!’
Vede como age esse juiz,
injusto embora, embora cruel
— fundo a olhar-lhes, Jesus diz —;

justiça aos que, insistentes, clamam,
não fará Deus, que é pai, então?
Em socorrê-los porventura
há de tardar? Crede que não!”


Livro de haicais
(in Haicais, épica & sonetos)
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No escuro da mata
— a luz, súbita e a flux,
na voz da cascata.

MENDIGO

Na calçada (enorme
ferida à mostra). Que vida
tem o que aí dorme?



SOZINHO

À mesa, vazia,
já sem no bolso um vintém,
o bêbado ria.

CONSIGO

— “Não sejas qual lesma”, a
criatura de vida dura
repete a si mesma...

NOTURNO

Deserto momento
da noite, em que é um açoite,
de tão frio, o vento.

A ARANHA

Em sua teia trêmula,
a aranha. Hirta, tamanha,
paciente vemo-la.

LIÇÃO

Natureza ensina:
o mato protege o regato
de água cristalina.

PAISAGEM

Quanto o olhar se adensa,
do homem! Canaviais somem
na planície imensa.

DA VISTA
DE UMA PONTE

Altiva, a cascata
espuma e ruge como uma
pantera na mata.

A CRISTO OU A UM
REPRESENTANTE SEU

De novo ergue o cálix,
e não te importes se em vão
seja que tu fales.

ESCONDERIJO

Mercenário, o sol
caustica. À serpente fica
cômodo o paiol.

JANEIRO

Vejo um flamboyant:
pendidos braços floridos
na bela manhã.

QUEM SEJA

Assoma à janela,
e esteja na rua quem seja,
fixa o olhar nela.

ÚNICA

Flores com que adornes
os belos, loiros cabelos,
e única te tornes...

SINOS...

Sinos, sinos, sinos,
que em vão bimbalhais se vão
já longe os meninos!

IMPRESSÕES
DO SERTÃO

O ermo da mata
espessa, ávido, atravessa
um raio de prata.

PRIMAVERA

O vento os tambores
soar faz, e é todo o ar
perfume de flores.

MOMENTO

As folhas fremem
no vento. Nesse momento,
no chão, sombras tremem.

INDEPENDÊNCIA

Pousa o filhotinho
de ave num galho de árvore...
P’ra trás fica o ninho.

MAIO

Tardinha de maio.
De sol, sobre o girassol,
um último raio.

MOMENTO (II)

Em seu esplendor
se vê, em agosto, o ipê
coberto de flor.

À SUA MANEIRA

Chuva torrencial.
Grasnando, a estão festejando
gansos no quintal.

SETEMBRO

Borboletas, tantas
— azuis, brancas como a luz —,
com que tu te encantas!

IMPERATIVO

Reto proceder:
remorsos, sabe-se, e dor,
há no entardecer.

GRATIDÃO

Sob este céu gris,
a preta, mas borboleta,
bate asas, feliz.

ARRABALDE

Nas poças da rua
e em cada lago espelhada,
de tão alta, a lua.

CAUTELA...

... Que na estrada às vezes,
da vida, em que, a toda a brida,
se vai, há reveses.

RUIDOSAMENTE

Contra a penedia
as ondas batem, redondas,
— e a alma se extasia.

CONVITE

Talvez que te chame
a olhar a vida a reinar,
este mar que brame.

OUTONO

Cousa dum minuto:
desprende-se a folha, e surpreende
com o balé gratuito.

PENÚLTIMO HAICAI

Saudando o azul,
na tarde clara que arde,
balança o bambu.

ESCOLHA

Chamem-me de louco!
Do Verso faço universo,
que tudo é tão pouco.


Sínteses
(in Tempo de reencontro)

PROVÉRBIOS 3, 18-19

Prudência... Sabedoria...
Árvore da vida... Eis são
felizes os que as abraçam
seguindo na retidão.

MODERAÇÃO

Tuas palavras modera,
jamais instigues ninguém;
se há no excesso o pecado,
na prudência há sempre o bem.

DOS DEFEITOS

Não apontes, em censura,
o erro de seja lá quem;
o insensato vê no outro
a mancha que ele é que tem.

LIÇÃO

Lição bela a deste lírio
para a humana criatura:
é possível ser-se puro
mesmo sobre a lama impura.

ECLESIÁSTICO 1, 31

Entre os, da sabedoria,
tesouros, ’stá a instrutiva
parábola, que ao prudente
endireita, instrui, cativa.

ECLESIÁSTICO 5, 15

À sensatez acompanham
a honra e a consideração,
mas a língua do imprudente
é sua própria perdição.

PROVÉRBIO CHINÊS

Três coisas há que não voltam:
a flecha que é arremessada,
a chance ida e a palavra
dita de forma impensada.

PROVÉRBIO CHINÊS (II)

Não te desesperes nunca,
por pior tua amargura;
das nuvens mesmo mais negras
cai água límpida e pura.

UM TERCEIRO

Se limpa a cidade queres,
a parte a ti destinada
faze já, principiando
por varrer tua calçada.

SENTINELA*

Mais importante do que
vigiar seja lá quem
é a si próprio vigiar ,
e o fazer como ninguém.
 ___________________
Embora trivial, eis uma quadra em que o poeta não se reporta, ao menos propositadamente, a nenhum provérbio bíblico ou conceito popular.

DOS DEFEITOS (II)

Difícil não é nos outros
ver defeitos, e apontá-los;
difícil é, isto sim,
em nós mesmos enxergá-los.

CALEMO-NOS

Aquilo que porventura
queiras cale a demais gente
— reza o dito popular —,
cala tu primeiramente.

O MELHOR TEMPERO

Sabe, livre de caprichos,
quem nas lidas se consome:
não há tempero que seja
como o que se chama fome.

NADA ESPERES**

Nada esperes de outrem, nem
palavras lances a esmo;
na luta de todo dia
faz-se o homem por si mesmo.

 ___________________
** Embora trivial, eis outra quadra em que o poeta não se reporta, ao menos propositadamente, a nenhum provérbio bíblico ou conceito popular.

DAS MAIS BELAS

Máxima que é das mais belas
e que nos chega ao mais fundo?
Esta, que assim se resume:
“Os mansos possuem o mundo.”

PROPÓSITO

Por mais espinhos e pedras
espalhados, eis que irão
pela estrada os pés até
onde queira o coração.

ECLESIÁSTICO 6, 25-26

(DO JUGO LEVE
DA SABEDORIA)

Põe sua coleira ao pescoço,
nos pés os seus ferros (pões...):
tal coleira eis te não fere,
nem ferirão tais grilhões.

SENSATEZ

Aos desocupados trela
tu não dês, que eles farão
(ensina o provérbio árabe)
de ti sua ocupação.

OPORTUNO

Aprendizado propício
pelos caminhos e sendas:
“Antes de a alguém conheceres,
não o louves nem ofendas.”

ECLESIÁSTICO 11, 22

Atenção não prestes tu
ao que o insensato trama;
limitando-te ao que fazes,
confia, agradece e ama.

AVANTE! ***

Jamais te sentes e deixes
blasfeme tua boca, e trema.
Não nos seja a vida barco
ao léu porque ninguém rema.

 ___________________
*** Idem.

A TODO HOMEM

Se o bem deves semear,
e prodigamente, a esmo,
o mal, varrer, começando
pelo arraigado em ti mesmo.

CONCEITO

Alegria, dor? Não creio
’steja o destino traçado;
o mal ou o bem tão somente
atendem ao nosso chamado.

A VELHA CARROÇA

Do conto, a velha carroça
é todo ser que injuria:
que enquanto vai pela estrada
descarregada é que chia.

DAS CONFIDÊNCIAS

Confidenciaram-te algo?
Os lábios de todo sela!
Do mal guardado é que o gato
se empacha e se refestela!

PROVAÇÃO — MAL
NECESSÁRIO...

Provação — mal necessário,
existência — aprendizado;
o pilão conserva o odor
do alho nele socado.

IMUNE?

Não te, a tudo, imune creias,
nem digas: — “Que mal nos faz?”
Aquilo que tu semeias,
é aquilo que colherás.

JAMAIS

Jamais ajas com ardil.
E olha o que tua mão tece!
O que se faz pela noite,
de dia sempre aparece.

VIGILÂNCIA****

Palavras — grãos atirados;
um gesto, o jeito. Aprendamos:
não atraímos senão
aquilo por que chamamos.

 ___________________
**** Idem.


ou: 
Lamentações
(in Tempo de reencontro)

(CENA ÚNICA)


Quiçá o mais poético dos livros constantes da Bíblia Sagrada, o Livro de Jó é a história de um homem rico em caráter e espírito, bem como em posses e filhos, cuja provação consistiu em perseverar em Deus ao perder tudo e ao ver se lhe manifestar a lepra, uma e outra cousa por obra do Diabo, que, se apresentando diante do Senhor, a este desafiara, defendendo a ideia de que tal retidão e temeridade eram em razão de ter sido o Altíssimo demasiadamente generoso para com seu servo, e que, no sofrimento, não tardaria o mesmo a trair a fé que depositava em Deus. Permitido então a Satanás castigar Jó, destruindo-lhe os bens, a família e a própria saúde, com exceção da vida, eis que o que se vê, como não poderia deixar de ser, é o comovente quadro de um homem sobre cinzas, destruído, mas irredutível no que toca a seu caráter e virtuosidade. Tentam consolá-lo três amigos: Elifaz, Bildade e Zofar, até que, num determinado momento, toma a palavra Eliú, que, irritado com o pouco efeito das palavras daqueles, procura, afinal, confortá-lo, o que só conseguirá de todo o próprio Criador, cuja voz se rompe de uma tempestade súbita.
Composto paralelamente ao opúsculo Sínteses, o poema “Jó” é apenas uma despretensiosa adaptação de uma das obras-primas das Escrituras, cuja beleza o motivou, cuja beleza tem por fim, unicamente
A.   P.

3, 11


No ventre de minha mãe
por que foi que não morri?
Por que, de suas entranhas
ao sair, não pereci?

3, 13-17

Em paz então dormiria
entre príncipes, mendigos,
e bons e maus indistinta-
mente no pó dos jazigos.

3, 18-19

Ali descansam os mansos
e os que causaram horror;
repousa o algoz, como o escravo
do jugo do seu senhor.

3, 20-21

(Pausadamente)

Por que conceder a luz
aos infelizes, a vida
àqueles cuja alma está
desconsolada, ferida?

3, 25

(Voltando-se para os amigos)

Afinal se realizam
os meus temores sem fim;
tudo aquilo que eu temia
eis que agora vem a mim.

4, 4

ELIFAZ

As palavras da tua boca
ergueram o que caía;
perturbas-te agora e tombas
ao sopro da ventania?

4, 6

Não é a tua piedade,
em suma, a tua esperança,
tal como a integridade
da tua vida segurança?

4, 8

Quem pratica a iniquidade
(Elifaz ressalta)
                — quem
o sofrimento semeia,
para si colhe-os também.

4, 9

Ao sopro de Deus perece
o ser encolerizado;
o iníquo, o trapaceiro
por ele é eliminado.

4, 15-20

Perpassou pelo meu rosto
um frio, fez-me arrepiar
o pelo; uma débil voz
se pôs assim a falar:

— “Quem, do Senhor na presença,
é justo, é puro? Se até
os anjos lhe têm defeito,
seu servo indigno lhe é,


quanto mais uns habitantes
de pobres casas de argila,
tendo o pó por fundamento,
que um piscar de olho aniquila.”

5, 2

O arrebatamento é que mata
o insensato, como a inveja
é que ao invejoso aponta,
por mais escondido esteja.

5, 6-7

O mal não brota do pó
nem rompe o sofrer do chão;
cria-os o homem, tal correm
os raios pela amplidão.

5, 17-18

Bem-aventurado aquele
a quem o Senhor repreende;
fere-se, é golpeado,
mas nele a luz se reacende.

6, 2-3


Medissem-me as aflições 
e as veriam mais pesadas
que a areia do mar, razão
de palavras desvairadas.

6, 4

Cravadas estão em mim
as setas do Onipotente.
Meu espírito o veneno
delas bebe, descontente.
  
7, 5

Minha carne eis que se cobre
de imundície e podridão;
racha-me a pele e supura,
não tenho consolação.

8, 2-6

BILDAD

(tomando a palavra)

Até quando tu dirás
coisas assim, sem razão;
tuas palavras té quando
feito vendaval serão?

Nunca Deus fará curvar
o que é reto. Se ao Senhor
recorreres e implorares,
te atenderá com que amor!

8, 20-21

Deus não rejeita o homem íntegro
e aos malvados dá a mão;
tornar-te-á de novo o que eras,
e os teus lábios sorrirão.

9, 2-3


Sim, sei que desse modo é...
Quem contra Deus razão tem?
Disputar não posso com ele,
como não pode ninguém.

9, 11

Passa por mim sem que eu sinta
sua presença divina;
leve me toca, através
de uma brisa vespertina.

9, 20

Pretendera eu ser justo,
meu lábio me condenara;
fora inocente, e ele
perverso me declarara.

9, 21-22

(Subitamente exaltado)

Inocente é o que sou!
Viver que sentido tem?
Sofre flagelos como o ímpio,
penas o puro também!

9, 25-26

(Retomando o tom anterior)

Os dias da minha vida
são ligeiros qual corcel,
passam quais barcas de junco
e como a águia no céu.

10, 1-2

Desgostosa está minh’alma
(dou eu curso ao meu lamento);
da amargura que há em meu peito
falarei neste momento.

Em lugar de condenar-me,
ao Senhor: “Qual a razão”,
direi, “de assim me tratares,
se obra sou de tua mão?

10, 14-16

Se peco, tu me observas;
ai de mim, se for culpado!
Caças-me como a um leão
por vezes, ai! se esgotado.”
  
10, 20-21

Que ele me deixe um instante
respirar, antes que eu suma
da noite da eternidade
em meio à mais densa bruma.

11, 5-6

SOFAR

Se Deus pudesse falar,
então te revelaria
os mistérios infinitos
de sua sabedoria.

11, 8-9

É a sua perfeição
mais alta que o céu, mais funda
que o inferno, e é igual ao mar larga,
e igual à terra ela abunda.

11, 13

Para Deus estende os braços,
volta a Deus teu coração;
à tua súplica não
deixará de ouvir então.

11, 17

O teu futuro terá
do meio-dia o clarão;
e em magnífica aurora
tuas trevas mudar-se-ão.

14, 1-6


(absorto)

Nascido da mulher o homem
vive pouco e atribulado;
qual lírio que mal desponta
e se vê logo tombado.


A juízo é quem tu chamas,
sobre ele que abres os olhos?
Em paz deixa-o, muito embora
entre só pedras e abrolhos!

14, 7

A uma árvore há esperança;
cortada, ela reverdece,
e outra vez brotam seus ramos,
e, de novo, ela floresce.

15, 6

ELIFAZ

Tua boca é que te condena,
e peca, a falar a esmo;
teus lábios que testemunho
ora dão contra ti mesmo.

16, 9-10


Meus inimigos dardejam
sobre o meu ser o olhar,
a mim me insultam, na face
me batem, pra me ultrajar.

16, 12-14

De mim perdi-me, em pedaços
fez-se aquele que era inteiro;
me ataca e fere Deus como
que com punhos de guerreiro.

16, 18

(Jogando-se ao chão)

Não me cubras, terra, 0 sangue
que sobre ti ’stá deixado;
e que seu grito não seja
pela tumba sufocado!

18, 2-5

BILDAD

Quando é que tu, afinal,
de falar acabarás,
tu, que em teu furor te rasgas
e que já não possuis paz?

Eia! A lâmpada do mau
um dia se apagará;
e a flama do seu fogo
de alumiar cessará.

19, 7


Clamo contra a violência,
não me responde ninguém;
a voz levanto, justiça
que fazer me possa há quem?

19,13-17

Meus irmãos foram-se embora,
como aqueles que hospedava;
dão-me os serviçais as costas,
como me mandando à fava.

Minha mulher tem horror
ao meu hálito estragado;
aos próprios filhos não me é
espanto seja eu pesado.

19, 23-24

Ser pudessem em livro escritas
minhas palavras magoadas!
Por estilete de ferro
ser no chumbo elas gravadas!

20, 3-5

SOFAR

Quanta queixa de teu lábio
ao Altíssimo injuria!
Só do homem mau são breves
o triunfo e a alegria!

20, 6

Inda que sua estatura
chegasse ao céu, sua fronte
tocasse as nuvens, ao mau
se fecharia o horizonte.

20, 19-2

Por desamparar o pobre,
tirar o pão que não come,
por ser ele insaciável
na abundância terá fome.

Fará Deus chegar a ele
o fel de que é causador;
de ferro inda que à arma fuja,
não evitará a dor.

20, 28-29

Contra o mau uma corrente
se joga da ira divina,
e o leva; é essa a sua herança, a
sorte que Deus lhe destina.

21, 34


Ai! Nada significa
a vossa consolação;
todas as vossas respostas
apenas perfídia são.

22, 12-20

ELIFAZ

Fitando a altura dos céus,
tu dirás: — “Que sabe Deus?
Pode julgar de entre os astros
ou dos mais longínquos breus?”

Segue então rotas antigas,
por onde iníquos andaram;
verás que com o próprio fogo
é que afinal se queimaram.

Vendo-os, os justos se alegram
e deles mesmo escarnecem:
— “Os bens o fogo lhes tira,
e por seus erros padecem.”

22, 21

Faze as pazes com o Altíssimo,
com Deus te reconcilia;
e, assim, te será de novo
dada a perdida alegria,

22, 28

Feliz êxito terão
os projetos que formares;
raios de sol brilharão
por onde te enveredares.

23, 2-5


Minha queixa hoje é revolta,
e com Deus falar quisera
acerca do meu tormento,
da dor que me dilacera.
  
23, 8-9

E se eu for ao oriente
e ao seu extremo, em vão;
se ao norte o buscar, à toa,
e achá-lo ao sul também não?

23, 12-13

Não me afastei dos preceitos
de seus lábios, fiz-me fiel;
mas faz ele o que lhe agrada
acima e abaixo do céu.

23, 15

Eis por que sua presença
me enche de tal pavor,
que basta o seu pensamento
para a tremer eu me pôr?

25, 5-6

BILDAD

(irritado)

Até mesmo a luz não brilha,
e, aos seus olhos, não são puras
as estrelas; quanto menos
insensatas criaturas.

26, 4


A quem afinal diriges
tal nota, assim inflamada,
que força essa que te inspira?
Não me respondes tu nada?

27, 5-7

Até o último suspiro
a minha inocência eu hei
de defender, e a justiça
jamais abandonarei.
  
Seja  o meu adversário
tratado como culpado;
e igual a um mentiroso
o inimigo declarado.

27, 13-14

Eis a sorte que o Senhor
para os maus tem reservada:
se seus filhos proliferam,
fazem-no é para a espada.

27, 16-17

Se os maus amontoam ouro,
vestimentas como argila,
é o justo quem as veste,
para este a prata cintila!

27, 22-23

Arrastados são em fuga
dir-se-ia desvairada;
de sua própria casa os tiram,
e sua queda é festejada.

28, 20

A eles o que é que falta?
Falta-lhes sabedoria.
E onde é que está, em que túmulo
jaz ela pálida e fria?

28, 23-28

Deus quem conhece o caminho,
quem sabe onde a encontrar,
que sabe os confins da terra
e está no céu e no mar.

Viu-a e então descreveu-a,
e aos homens disse: — “O temor
a mim é a sabedoria,
lenitivo à vossa dor.”
  
29, 2-3

(Virando-se)

Quem me tornará como antes,
quando Deus me protegia,
e sobre a minha cabeça
sua lâmpada luzia?...

29, 11-12

Quem por acaso me ouvia
a mim me felicitava;
dava eu socorro ao mendigo,
ao órfão pão não negava.

30, 16

Agora o pavor me invade,
tive a coragem varrida;
foi-se me a felicidade
como por vento atingida.

34, 7

ELIÚ

(intervindo)

Feito Jó, para beber
a blasfêmia como quem
bebe água, onde afinal
haverá de ter alguém?

34, 10-11

Longe de Deus a injustiça,
longe qualquer malvadeza;
ao homem responde conforme
seus atos, sua natureza.

34, 21-22

Para o proceder do homem
olha Deus, seus passos sonda;
e escuridão não há onde
dele o iníquo se esconda.

37, 5-6

Deus troveja com uma voz
de fato bela e perfeita;
diz: — “Cai”, à neve, e à chuva:
— “Contigo traze a colheita.’’

37, 24

Reverenciem-no os homens
com toda alma e coração;
para os que se julgam sábios
ele não tem olhos, não.

38, 2

O SENHOR

(então, do seio da tempestade súbita)

Quem é aquele que assim
obscurece a Providência
com um lamentar sem fim,
falar sem inteligência?

38, 12-16

Quem é que ao tempo ordenou?
À aurora disse o lugar?
Foi aos extremos da terra,
e às profundezas do mar?

38, 28-29

Quem gera as gotas de orvalho?
Terá a chuva um pai?
A geada quem a engendra?
De que seio o gelo cai?

39, 13-26

A asa da avestruz
quão alegremente bate!
Seus ovos chocam no chão
de um deserto que é escarlate.

Como se não fosse sua
trata às vezes à ninhada;
tola, a correr, todavia,
não se compara a ela nada.

Compensou-lhe a estupidez
co’a ligeireza que mão?...
De que oficina o cavalo
saiu, bem como o falcão?

39, 35


Falei uma vez, Senhor,
Senhor, não repetirei;
duas vezes... e eu nada,
eu nada acrescentarei.

40, 2-3
               
O ALTÍSSIMO

Cinge os teus rins como um homem;
me responderás apenas:
a minha justiça, antes
de ter razão tu condenas?

40, 4-25

Tens tu o braço ao meu
muito mais que semelhante;
a tua voz, como a minha,
é forte, rouca, troante.

Orna-te então de grandeza,
reveste-te de esplendor,
com o olhar humilha o soberbo,
e te dirigirei louvor.

Vê Beemot, que criei contigo,
come da erva da montanha,
ossos tem quais tubos de aço,
força tal que ao leão acanha.

    Deita-se ele sob o lótus
n’água e na terra é senhor;
transbordado o rio, não
lhe causa qualquer temor.

Para querer afrontá-lo
ninguém é bastante ousado;
quem sairia com vida
tentando pôr-se a seu lado?

Saem-lhe chamas da goela,
e fumaça de suas ventas;
é pedra o seu coração,
e seu espirro afugenta.

Feito para não temer,
nada a ele há igual na terra;
tudo o que é elevado afronta
e tão só vigor encerra.

42, 5-6


Os meus ouvidos só tinham
escutado sobre ti.
E eis que — já queixas não tenho —
eu finalmente te vi!

Fevereiro-março de 2011

Cantigas para guardar


Cedendo à simplicidade
do autêntico trovar,
compus estas, que intitulo,
cantigas, Para guardar.
_________________________

AMOR, ENLEVO...

Para uma trova compor
das que falam ao coração,
há que inspirar-nos amor,
enlevo, recordação...

ANOS 80

Saudades... recordações...
de hortos... e praças... Ah, sem
o saber, os corações
felizes, a querer bem!

DAS CONQUISTAS

O que se alcançou, por mais
belo que seja, risonho,
nunca vale o que em si traz
nosso acalentado sonho.

POR MAIS SE NOS APRESENTE

Por mais se nos apresente,
juventude, a vida bela,
passa o tempo de repente,
o encanto levando dela.
 
AGRADECE

Por tudo o que te rodeia,
que não ores, agradece!
De gratidão a alma cheia
já é, toda ela, uma prece.

DA SORTE

“É da sorte” — frase ouvida —
“ser-se pleno ou desgraçado”?
Determina em tua vida
e dirás não ao mau fado.

RECADO

Lição pura dos caminhos,
sejam por quais o homem for:
mesmo entre pedras e espinhos,
às vezes, brota uma flor.

SENSATEZ

Julgar?! Jamais, a ninguém!
Cabe a nós nos proteger
contra o que nos vai, porém,
no recôndito do ser.

MÍNIMA SEJA

São-te os dias sempre ermos,
te é a vida desolação?
Não vês que é preciso termos,
que mínima, uma ilusão?!

AVISO

O verbo, como o utilizes,
paz ou guerra gerará;
portanto, com o que tu dizes,
cuidado, cuidado já!

DA AUTOCOMPAIXÃO

Triste de quem pela vida
tão só passa a rogar praga,
boca e alma ressequida,
crendo única a sua chaga.

POR MAIS QUE...

Sê cristão com todo o mundo,
o tempo todo, aonde fores;
por mais que te firam fundo,
todo o mal paga com flores.

PUDESSE...

Ah, de fato, quão bonito
se o homem pudesse achar
dentro de si — o infinito,
n’alma — o arminho do luar!

CONDIÇÃO

Como ser pleno, pessoa
que goze de maior bem?
Sem que tu vejas a quem,
conforta, serve, abençoa.

ÂNIMO!

Não digas que não há jeito,
à frente é pedra, é espinho...
Não sabes? Não está feito,
ao andar faz-se o caminho.

DÁ-TE...

Receita para ascensão,
e plenitude, alegria?
Ei-la: suor e coração
na luta do dia a dia.

MALDIZENTE

A ferina e malfazeja
língua esquece que, afinal,
o lírio puro viceja
à margem do pantanal.

NEM MAL, NEM BEM

De seja quem for jamais
falemos, nem mal nem bem,
supondo, consciência em paz,
de nós não fale ninguém.

CAUTELA

Cuidado por onde vais,
sê mais atento a perigo.
“Cautela nunca é demais”
— nos fala o ditado, amigo.

RECEITA

Não pares, segue adiante,
tendo alegre o coração;
do que marcha confiante
sorte e tempo amigos são.

DEFINIÇÃO

Deus — expressão de beleza,
de luz, de vida, de amor,
presente na natureza
que te inspira, ó trovador.

AMOR

Feliz, da face, a expressão,
nos olhos — certo fulgor?
Tudo isso não é senão
a presença, em nós, do amor.

VAIVÉNS

Seguem-se às horas mais belas
e instantes de mais amor
inesperadas procelas,
solidão, frio, negror...

A TROVA 

A trova, saída do povo,
tão delicada e singela,
conquanto nada de novo
diga, será sempre bela.



Parca inspiração 

- ÚLTIMAS REDONDILHAS -

(in Prólogos)



De como outrora compor
gostaria, porém não
o posso... Se é pouco o ardor,
é parca a inspiração.
_________________________

I - CONCEITUOSAS  

RECEITA

Com outrem como consigo,
quem se disponha a ser bom,
da voz não levante o tom,
mal não queira... a um inimigo!

PRECEITO

Intempérie, golpe, ofensa?...
É Cristo quem nos ensina:
— Àquele que determina
o que pode haver que vença?!

DA SORTE

Sorte boa? Negro fado?
Não creia nisso ninguém.
Conforme a fé que se tem
é que o destino é traçado.

POR PIOR...

Nota a quem por amargura
esteja passando agora:
“Medonha que seja, escura,
à noite sucede a aurora.”

JUVENTUDE (II)

No porvir põe fé, pareça
nuvioso embora. Sina?
— Esfaz-se a névoa mais espessa
e um mundo nos descortina.

ESCOLHA

Contra a rudeza peleja;
prefere, a tudo, a doçura.
Breve que um afago seja,
grande mágoa, às vezes, cura.

ISAÍAS 30, 15

De ódio, ou por outro mal d’alma,
o homem não se contorça.
Na confiança e na calma
esteja toda a sua força.

CONDIÇÃO

Conquanto te atinjam o ser
farpas, golpes aos milhares,
tão somente hás de crescer
se a ti mesmo te humilhares.

EM PROL DO BEM

Não apertes, frouxa o nó...
foge à menor das contendas;
— tuas horas que empreendas
em fazer o bem tão só!

SEJA A QUEM FOR

O mal que outrem me faça,
que retorne como um bem.
Mais que vencê-lo, é uma graça
não desejá-lo a ninguém.

AINDA QUE...

Não te aflijas, inda que
o agora em dor se resuma.
O homem sensato entrevê
a luz na mais densa bruma.

DA PAZ E DAS QUERELAS

Guarda o sensato — sigilo,
faz-se o tolo — tagarela...
Se este fomenta a querela,
repousa aquele tranquilo.

FATALMENTE

Negro, vazio, enfadonho
este mundo nos seria,
não nos fosse a fantasia,
a réstia de luz de um sonho.

ASPIRAÇÃO

Ser como o sol: em agonia,
atrás daquela montanha,
réstias de luz esparzia
de encanto e graça tamanha.

INDELÉVEL

Dispuseste-te a pagar
o mal com flores apenas?
— Olor nas mãos te há de ficar
de rosas, murta, açucenas.

II - BREJEIRAS   

SOBRETUDO

Na trova se fala em dor?
Em alegria igual se fala!
Se é trova, é de pressupor:
sobretudo o amor propala.

LÍRICA (II)

Dentro em mim, imperativa,
uma voz falar-me vem
que tão só por ela viva,
por ela só, mais ninguém.
  
EM VISITA

— “No ninho dos periquitos
pipilam dois... três filhotes.”
Mas são teus olhos que fito;
que pena tu não o notes!

JASMINEIRO

Dentre as flores do canteiro,
que tenro e alvo, o jasmim!
Alva e nova, jasmineiro
carregadinho és, enfim.

CEREJA

Com ou sem batom, cereja
são teus lábios, acredita!
Há, acaso, quem te não veja
que te não ache bonita?

REDEMOINHOS

Teu belo cabelo solto,
levanta-o súbito o vento
a girar... girar... revolto,
igual ao meu pensamento.

CIÚME

Incerto quanto ao que sente,
ao que quer, a tudo, enfim,
o simples vê-la entre a gente
dói sobremaneira em mim.

ESCOMBROS

“Tudo passa.” Que é que fica?
— Máxima um tanto acertada:
nos era o amor cousa rica;
não nos resta dele nada!

LÍRICA (V)

“Amar é viver” — nos diz
velho rifão popular;
no entanto há quem infeliz
morra também por amar.

LÍRICA (VII)

“Amores, uns vão, uns vêm”
— afirmação popular;
fui eu notar-te, porém,
e a mais ninguém pude amar!

De sonho e de infinito

DE AFETOS 

Ao te verem com teu
yorkshire: — “Ele
não te deixa”,
falam. E,
em pensamento,
lá contigo, dizes:
— “Não o deixo
eu.”

QUANDO EM PASSEIO

Gostava era do despertar cedo
quando em passeio
a alguma propriedade rural
de parente ou conhecido. O estalo
da madeira no fogo, o rumor
das aves domésticas
no quintal, atrás
do milho que lhes era atirado, o mugido
da rês parida de pouco,
a que a cria respondia
imediatamente,
me encantavam.

Depois, o leite cru, servido
no curral em grandes canecas
de alumínio.
A conversa em torno
de coisas do campo
e política, conversa
de gente grande,
que ouvia, contudo,
atento.

Encantava-me
a alegria da bezerra,
cabeceando a barriga da mãe,
após a ordenha,
para que o leite restante descesse; alegria
de que os machos nem sempre gozavam (e isso
me doía), pois
(não foi
em um ou outro lugar)
lhes era roubada até a última
gota do alimento materno, e,
ainda que dessem cabeçadas — e davam,
e balançassem o rabo — e como
o balançavam, em sinal
de desejo de provar do branco líquido,
nada
surgia daquelas tetas
já murchas.
Por fim, frustrados
(doía),
consolavam-se
de ficar de pé ali, juntinho ao ventre
quente da mãe, até
que fosse
chamada para a cocheira.

Sobre isso, me orgulhava
de meu avô, que,
em sua pequena propriedade,
cujo gado mestiço,
não conhecendo canzil,
respondia com parca produção,
recomendava ao camarada recém-contratado
que deixasse sempre um peito mesmo para os vitelos.

MANHÃ DE NOVEMBRO

Manhã
de novembro, com sol
e umas poucas
nuvens paradas,
brancas e paradas,
no céu. Vou
pelo passeio, notando
o persistente trabalho das formigas.

No chão, folhas picotadas
da galharia renovada,
que são por elas transportadas,
bem como suas companheiras
mortas por nossos pés,
curiosamente tão maiores que aquelas
que as vão puxando,
que, talvez
— quem sabe? —,
chegarão a crescer ,
cumprindo sempre
o seu papel,
labutando, labutando,
até que morram, também,
naturalmente (muito pouco
provável, é bem verdade),
por fogo, veneno ou,
como as irmãs que vão pacientemente carregando,
sob nossos pés.

A MEU MODO

De posse apenas de uma Sprint 10
e tendo à frente ruas e avenidas
em que eram o verde e o amarelo tudo
o que restara da Copa do Mundo;
de posse apenas de um rádio de pilha
que punha de costume junto ao ouvido
quando cantavam Zizi Possi, Rádio
Táxi, Pepeu, Sandra de Sá, Byafra;
de posse apenas de uns poucos trocados,
e sonhos, muitos sonhos, com que ia
cego eu às praças, hortos e à poesia,
camiseta regata, shorts, tênis
aquém daquilo que a moda ditava,
era, a meu modo, rico sem saber,
e era (só hoje vejo, e com que espanto,
quarenta anos decorridos quase),
a meu modo, também feliz e quanto!

QUEIMADA

Terá sido uma ponta de cigarro
atirada inadvertidamente por alguém
passando de automóvel? Terá sido
um fósforo riscado de propósito
junto à palha de uma gramínea dessecada
pelo inverno rigoroso?
Terá sido...?

É incerta a origem do fogo
que, pasto acima, arderá toda a noite e deixará
atrás de si, sob cinzas,
uma infinidade de insetos,
répteis, pequenas aves
a jazer carbonizados.

Diante do imensurável

(in Contos, memórias e alguma poesia)


EM SÍNTESE

— “Viagens?”
— “Paisagens novas?”
— “Mudança?”, me inquirem,
                                                    quando
apraz-me sempre a volta, não as idas;
se olho mais é para dentro, e me deleita
                                                                  e basta
aquilo a que
chamam rotina.
 
IMPRESSÃO DE UM TEMPO
A Nikson Salem
 
    Remetendo-nos ao final dos anos 1930, lírica, liricamente nos sugere esta fotografia da Avenida Joaquim Leite com seus casarões e sobrados entre lojas e prédios comerciais (lírica, liricamente) que, debruçado nos parapeitos de paramentadas janelas coloniais, se via, com certa atração, o ir e vir dos transeuntes pelo passeio público, motivados, se não pela paixão, pela vida, pela vida, simplesmente.

 A AVE ENIGMÁTICA
 
   Dentre as histórias de assombração que, à noite, fosse junto ao fogão a lenha ou noutro canto qualquer da velha casa rural, em Minas, nos contava e recontava nossa avó, uma havia de que guardo apenas o final: em que a assustadora aparição lhe atira aos pés, por motivo do qual já não me lembro, uma ave morta, dizendo-lhe:
    — “Olha o jacu aí, dona!”
    Isso ouvia antes dos dez anos, ou seja, há quase cinco décadas...
   E por que falo disso agora? Coincidentemente hoje, no alto da casa de um vizinho, uma ave surge, algo exótica, nada comum em plena cidade industrial. E eu, ao vê-la, afianço tratar-se mesmo da ave da história de assombração que, dentre tantas, nos contava e recontava nossa avó.

Novos haicais

(in Contos, memórias e alguma poesia)


PRIMAVERA

 

TRILHA

 

Sob a mata espessa

há festa por uma fresta

mínima em que a luz desça.

 

TRILHA (II)

 

Nas árvores velhas,

os verdes para vós verdes

— só os das bromélias.

 

NOVEMBRO

 

Alheio ao chuvisco,

o beija-flor eis que adeja

entre pés de hibisco.

 

CONTINUADAMENTE

 

Noitinha. — E o estridente

cantar das cigarras segue,

sem mínima pausa.

 

VERÃO

 

ESPLENDOR

 

Pompa no quintal:

florada amarelo-dourada

da cássia-imperial.

 

GARÇA

 

Em meio ao escuro

atoleiro com o seu mau cheiro

— o branco tão puro.

 

DEZEMBRO (II)

 

Mais fala a manhã,

de Deus, com esses galhos teus

em flor, flamboyant.

 

ANÔNIMA

 

Fendendo o concreto,

bem rente ao meio-fio — a

gramínea sem nome.

 

OUTONO

 

MUDANÇA

 

Junto a teus galhos,

já desnudos, não estroina

o vento, amendoeira.

 

PLENITUDE

 

À margem do rio,

com os galhos até o chão,

a velha amoreira.

 

PLENITUDE (II)

 

Paineira em flor. — Como

que a espelhando, o chão sob ela

igualmente encanta.

 

CAPRICHO

 

Pleno outono. — E é quando

exibe suas flores o flam-

boyant-de-jardim.

 

       INVERNO

 

MUDANÇA (II)

 

Primeiro de julho:

vossos galhos, nus. — E em flor

inda ontem, paineiras.

 

FOTOPERIODISMO

 

A cada semana

mais e mais vermelhas as

folhas da poinsétia.

 

RIGOROSO

 

Tão frio que corta,

o vento que sopra agora,

nos descabelando.

 

ESPETÁCULO

 

A lua desponta,

redonda, atrás das montanhas,

olhares roubando.



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