domingo, 11 de fevereiro de 2024

 

ESTA COLETÂNEA[1]


Coletâneas são comumente organizadas por professores, editores, poetas, com o propósito de divulgar trabalhos e autores, incentivar o hábito de leitura, levar à reflexão sobre questões as mais diversas, trabalhar valores morais e éticos, etc. Daí seu caráter educativo. Em formato de bolso, no padrão 14 cm por 21 ou em formatos maiores — isto é, em edições mais requintadas —, especificamente ou não direcionadas ao público infanto-juvenil, elas acabam por marcar época, como, por exemplo, as das séries “Nossos Clássicos”, da Agir, “Coleção Poesia”, do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo, “Vaga-Lume” e “Para Gostar de Ler”, da Editora Ática. Em produções independentes, ainda que em tiragem reduzida, são também comuns tais projetos, como se deu cá entre nós, décadas atrás, com 
Sonetos e trovas de Barra Mansa e Contos infantis, obras patrocinadas pela Câmara Municipal de Barra Mansa, como se deu com o volume Sonetistas do GREBAL, publicado em 1999 pelo Grêmio Barra-mansense de Letras.
Ao se editar, no entanto, esta coletânea, intitulada 19 contos contados e 1 cordel, cujo propósito é dar a lume escritos que não foram feitos senão por e para entretenimento, não se pensou evidentemente em nenhum outro sentido, inclusive didático, já que, pelo fato de se tratar aqui de um único gênero: o conto — à exceção de um trabalho intitulado “Rosa — a ciganinha”, poder-se-ia considerar a obra de caráter instrutivo, por apontar características comuns aos textos selecionados, mais ainda pelo motivo de terem sido escritos não por um, mas por quatro escritores, o que permitiria a comparação de um trabalho com outro, ao que se somaria, ainda, a possibilidade de terem alguns exemplares da obra lugar numa biblioteca municipal ou escolar. Bom que se ressalte que há certa confusão, à falta de um termo mais apropriado por um lapso nosso, entre o que se denomina crônica e o que se denomina conto[2], de maneira que mesmo em antologias de grandes editoras já pudemos observar uma crônica passar-se por conto, ou o contrário, devido à semelhança entre os dois gêneros.
Ressaltada tal questão, isto é, a de se desconsiderar a presunção de dar à coletânea qualquer caráter que não seja de pura diversão, podemos nos regalar com o que nos fica dessa empreitada realizada pelos grebalistas Asséde Paiva, Rozan Silva, José Fleming e Dirceu Avelar. O primeiro a que nos referimos é estudioso da história dos ciganos, fato que o levou a um livro sobre o assunto: Brumas da História — ciganos & escravos no Brasil. Ensaísta, escreveu recentemente o opúsculo Máscaras, enriquecido com uma antologia de autores de diferentes épocas e estilos os mais variados, em que se aborda o tema encerrado no título. Organizador e editor de um dicionário de onomatopeias, é também autor de Possessão, obra enquadrada no gênero esoterismo. Rozan Silva é autor nada mais, nada menos do que do livro GREBAL — da fundação à sede, estudo pródigo em detalhes, fonte obrigatória de pesquisas para quantos se interessar possam pela instituição. Patrocinada pelo Grêmio Barra-mansense de Letras, teve a obra lançamento que lhe correspondesse à altura em 2015, por ocasião dos quarenta anos da entidade. José Fleming é consagrado contista em nosso meio: Balaio de paiolContos da lua negra e, em parceria com Eliette Ferreira e Francisco Nogueira, Os olhos do falecido. Como poeta, colabora em jornais e antologias, tendo publicado, juntamente com Menulfo Nery Bezerra e conosco, o volume Haicais, épica & sonetos. Dirceu Avelar, como José Fleming, é contista de escol, de uma naturalidade inquestionável e a um tempo de um primor ímpar. Contentor de prêmios, medalhas, menções, está presente em diversas coletâneas, jornais e sites, com seus contos sempre elegantemente escritos.
Regalarmo-nos, como dissemos anteriormente, sim. Consideremos, entretanto, desnecessário o aprofundamento em qualquer texto que seja, comentando, em lugar disso, superficialmente, um de cada autor.
Algo espirituoso, o conto “Um bicho muito estranho”, de Dirceu Avelar, por exemplo, nos remete à paisagem sertaneja e às personagens pitorescas desses rincões. Há nele referência a uma religiosidade que nos é comum a todos, de gente que recorre a promessas por razões as mais diversas, etc., etc. Gira a história em torno de um mistério, uma criatura desconhecida:

 “... marcas de onça não encontraram, mas um grupo de índios caiapós, aqui da região, dera notícia de sinais de certo bicho que não era canguçu, por causa das marcas deixadas no barro de uma lagoa.
“A notícia se espalhou e o povo das fazendas ficou amedrontado. Dizia-se que não era bicho da nossa região. Daí pra frente, as tais pegadas foram aparecendo em outras propriedadesMas veja o senhor que o tal bicho até parecia muito inteligente, pois caçava ora aqui, ora acolá, distribuindo o prejuízo que dava.
“Aí correu notícia de que um caçador havia dado com os olhos nele. Era noite de lua e ele viu de longe, no campo, o que lhe pareceu ser uma pedra escura e muito grande, mas que se mexeu e se levantou do chão. O caboclo jurou que era o diabo, porque tinha dois chifres, duas cabeças e era da altura de uma casa... E isso além de ter cinco pernas e um rabo curto.”

Dois chifres, duas cabeças, da altura de uma casa, com cinco pernas, rabo curto e... eis que o bicho se biparte, faz-se mais de um. Mister é deixar de falarmos, criando, assim, expectativa no caro leitor, que com certeza procurará pela resposta, ávido de saber do que se trata, enfim, a criatura.
De José Fleming, identificamo-nos foi com “Aconteceu comigo”. É curiosa a história da personagem do conto, que, tendo morrido no meio da noite, se acha subitamente de pé na escuridão de seu quarto, junto à janela aberta, olhando para o muro de adobe, sobre o qual, acocorado, está um vulto que a fita enrolado num cobertor que ela havia deixado na varanda a enxugar. Não se dando ela conta, entretanto, do seu passamento, confunde-se por algum tempo, até que...
Além da atmosfera nebulosa presente na narrativa, o sentimento amoroso ali tem lugar de destaque, manifestando mesmo certo romantismo.
História que se dá num passado remoto, o conto intitulado “O pintor”, de Rozan Silva, é carregado de mistérios. Persuasão dá lugar a sugestão. Neste fragmento extraído do parágrafo inicial do texto, por exemplo: “Um reino, um reino governado por um tirano...”, note-se que há imprecisão, que se segue em: “Certo dia, chegou um homem idoso...” (Atentemo-nos para o pronome e para o artigo. Que têm em comum? — Indefinidos.) E, assim, sucessivamente. Quanto ao protagonista, o tal homem idoso...

No começo ele vivia quase recluso, poucas pessoas o viam, e ele só saía de casa à noite, para ir a uma taverna beber, o que fazia sozinho, em um canto, sem trocar palavras com ninguém, exceto com o taverneiro, para fazer o pedido de uma garrafa de vinho. Mas, como não incomodava ninguém, aos poucos parou de ser notado, até o dia em que...

... a partir de certo momento, revela-se pintor. De pessoas. E uma curiosidade há em seus quadros. Qual mesmo? Vamos à leitura, rumo ao desfecho do conto.
Asséde Paiva nos brinda, além de com contos de singular criatividade, com uma poesia do gênero cordel: “Rosa — a ciganinha”, distribuída em sextilhas, com rima nos versos pares. Setissílabos inspirados no amor, remeterão quantos os leiam ao universo dos apaixonados. São bastante expressivas as estrofes do poema, que, tal como começa, acaba: belamente.
No mais o livro aí está. É percorrê-lo, leitor, e saboreá-lo no que tem de mais humano e — por que não? — de divino também.
Boa leitura!

[1] Introdução ao livro Contos contados, de Asséde Paiva, Rozan Silva, José Fleming e Dirceu Avellar.

[2] Conto é uma narrativa de brevidade irregular, em que se destacam as personagens, o enredo e o discurso — que é o diálogo que porventura se faça presente, direta ou indiretamente, entre as personagens. Já crônica, no formato que tem hoje, corresponde a um gênero de certo modo novo. Com uma linguagem mais coloquial, sua temática aborda situações do dia a dia, a partir das quais o cronista desenvolve algumas reflexões sem grande profundidade.

ACONTECEU COMIGO

José Fleming



De repente me achei de pé na escuridão do meu quarto, junto à janela aberta, olhando para o muro de adobe, onde acocorado achava-se um vulto de olhos fitos em minha pessoa. Sob o luar da noite bastante fria observei que a figura em cima do muro achava-se enrolada em um cobertor que eu deixara a enxugar na varanda, debaixo da janela.
— Que é isso? Meu cobertor! Quem é você?
O vulto não se mexeu nem respondeu às minhas perguntas.
— Meu cobertor! Quem é você? — repeti.
Então uma voz feminina saiu de dentro do cobertor, onde no fundo de uma abertura um par de olhos me fitavam, luminosos e fixos:
— Eu sou a Lili.
Fiquei um tanto confuso ao ouvir a voz de uma mulher acocorada no alto do muro. Dentro do quarto, sem me volver do lugar, um pensamento me salvou:
— Estou sonhando.
Ainda enquanto pensava, a voz além da janela voltou a falar.
— Eu sou a Lili.
Permaneci mudo. Não conseguia atinar por que numa noite fria uma mulher viera encolher-se no muro em frente à minha janela. Sua voz clara e suave retornou aos meus ouvidos:
— Eu sou a Lili. Nós fomos noivos. Não se lembra mais de mim?
Então um sopro de lembranças repaginou minha memória:
— Mas como?...
Ela abafou minha pergunta com uma voz um tanto elevada.
— Eu estou indo para o Céu!
— Mas como?...
Foi então que percebi que aquela criatura em cima do muro era uma alma não penada. Não me assustei, permaneci imóvel sem nenhum pavor:
— Como me encontrou? Veio me assombrar?
Não me deu resposta. Permanecemos em silêncio. Ela no cume do muro, eu na abertura da janela. Somente quando a Lua naquele mesmo instante surgiu num descampado da noite
lançando sua luz sobre minha casa e o muro de adobe, quebrou-se o silêncio que nos cercava. Sua voz retornou clara e serena:
— Estou a caminho do Céu. Nós iremos juntos.
Permaneci calado. Sem nenhuma surpresa ou emoção.
— Já escolhi o nosso caminho. É um dos mais belos caminhos do Céu. Ele passa por entre as estrelas do Cruzeiro do Sul — continuou ela.
O mais interessante ainda é que eu não me assustava com sua fala. De pé, na escuridão do meu quarto, nenhum medo me provocava a alma de Lili, acachapada no muro. De repente, percebi que precisava me manifestar, uma resposta se fazia necessária:
— Sou um homem de carne e osso. Tenho meus pés no chão.
Permaneci de olhar fito no vulto envolto no cobertor além da janela. Logo a voz de Lili retornou aos meus ouvidos:
— Apanhe um cobertor. A noite está fria.
— Mas que...
Sua fala subiu de tom, mais clara e mais incisiva:
— O senhor agora não é mais um ser humano. O senhor é uma alma. Faleceu no meio da noite.
Virei então o rosto para o fundo do meu quarto, onde, apesar da escuridão, avistei minha cama junto à parede, e, sobre o colchão, estirado no lençol de linho, meu corpo já frio jazia inerte, sem vida, dentro do meu pijama desbotado.

O PINTOR

Rozan Silva

Esta história aconteceu há muito, muito tempo atrás, em um reino governado por um tirano. Certo dia chegou um homem idoso que se instalou no mais populoso povoado do reino. No começo ele vivia quase recluso, poucas pessoas o viam, e ele só saía de casa à noite, para ir a uma taverna beber, o que fazia sozinho, em um canto, sem trocar palavras com ninguém, exceto com o taverneiro, para fazer o pedido de uma garrafa de vinho. Mas, como não incomodava ninguém, aos poucos parou de ser notado, até o dia em que colocou em sua porta um aviso dizendo que era um pintor, e aceitava trabalho. Demorou até que o primeiro cliente aparecesse, um pai que trouxe a filha de quinze anos, para que se fizesse seu retrato. O pai naturalmente quis acompanhar o trabalho do pintor, e passou os dias sentado a um canto, enquanto a filha posava para o artista. Ao fim de cada dia de trabalho tanto o pai quanto a filha queriam ver como estava ficando o quadro, mas, assim que se cansava, o pintor imediatamente cobria o quadro, dizendo que só quando estivesse terminado ele poderia ser visto. Esse primeiro trabalho demorou quase quinze dias, ao fim dos quais o pintor enfim permitiu que outros olhos que não os dele vissem a obra. E que obra! O pai ficou maravilhado, pois o quadro mostrava sua filha ainda mais bela do que era, as cores, as sombras, tudo fazia com que quem visse a pintura se encantasse. A partir dali a fama do antes recluso desconhecido, agora pintor, se espalhasse. E, como seu preço era módico, vieram bater à sua porta pessoas de todas as classes, e ele atendia a todos da mesma maneira, sem fazer distinção entre os mais abonados e bem vestidos, ou os mais pobres e quase maltrapilhos. Sim, porque a alguns ele mesmo os convidava para posar para um retrato, não importando se nem tinham casa nem parede para pendurar o quadro quando terminado. Porém seus métodos de trabalho continuavam os mesmos, e ele não deixava que vissem a pintura, enquanto não terminava. E mais um detalhe passou a fazer parte das histórias que contavam sobre ele: alguns quadros ele não entregava. Foram poucos, diziam, mas um homem que encomendara o quadro do sobrinho, para fazer um presente à irmã, contou que quando o quadro ficou pronto o pintor parou, deu uma longa olhada, e derramou um balde de tinta por cima. Em seguida, colocou o rapaz para fora da casa, sem dar tempo para reclamações. O homem disse que foi ao encontro do pintor, para saber o que tinha acontecido, mas que o pintor havia dito que era melhor que ele esquecesse o assunto, batendo a porta.
Após três anos que o homem começara a pintar, em um entardecer uma comitiva adentrou as ruas do povoado. Eram mais de trinta cavaleiros, armados e engalanados com roupas da guarda real, era o Rei que visitava pela primeira vez aquela paragem distante de seu reino. Todos se acercavam para ver o que estava acontecendo, alguns apenas espreitavam pela janela, visto que a fama do rei o precedia, melhor não correr riscos, pensavam muitos dos moradores, que ficaram dentro de suas casas. A comitiva parou enfim na porta do pintor, que já estava do lado de fora, como se estivesse esperando pela nobre visita. E o que o rei desejaria, senão o seu retrato? A fama do estranho pintor foi bater à porta do reino, e lá estava em pessoa o próprio rei. Era um pedido, ou melhor, era uma ordem irrecusável. Porém o rei não poderia ficar ali por dez ou quinze dias, era muito ocupado, o reino era vasto e cheio de problemas, e o pintor deveria pintar o retrato em um dia e uma noite. Pois que fosse, o pintor pôs-se a trabalhar. Dentro do quarto de pintura, o rei e o pintor desempenharam seus
papéis, as horas foram passando, pessoas se acumulavam do lado de fora, impedidas de chegar mais perto pela guarda real. Vendedores de comidas e bebidas, cantores, quase um circo fora formado nos arredores da casa do pintor. Era um acontecimento. Depois de trinta horas, sem que nem o rei nem o pintor adormecessem, o quadro ficou pronto. O artista, depois de dar uma longa olhada no quadro, pegou um balde de tinta, e derramou sobre ele, dizendo que não poderia entregar a pintura. Claro que o rei não era um qualquer a quem o pintor poderia fazer tal afronta. Levantando-se, com certa dificuldade por ter ficado tantas horas no mesmo lugar, quase escorregando em sua urina, o rei gritou pelos guardas, e levou o pintor preso, sob apupos da multidão, que, sem entender o que acontecera, gritava ora para soltá-lo, ora para queimá-lo em uma fogueira.
Dou uma pequena pausa na narrativa, para relatar que um boato corria sobre o trabalho do misterioso pintor. Seus quadros, os que ele entregava, eram maravilhosos. Os outros, os que ele destruía, ninguém tinha visto. Por isso, diziam que o pintor conseguia enxergar a verdadeira face, ou alma, do retratado. Quando era uma pessoa boa, o quadro exaltava a aura do retratado, se tornando uma obra-prima. Quando era uma pessoa má, diziam que o quadro retratava uma pessoa horrível, quase um monstro, e por isso o pintor não o mostrava, derramando tinta e destruindo-o imediatamente.
O pintor ficou preso na masmorra do castelo do rei por uma semana, ao fim da qual foi chamado à presença de sua majestade. Foi levado para um grande salão, onde o rei e seus ministros o aguardavam. A um canto do enorme salão havia um grande espelho, e, defronte, um cavalete com um quadro em branco e materiais para pintura. O rei então levantou a mão, todos ficaram em silêncio. Quero ver qual a cor de sua alma, bradou o rei, se é negra ou azul. Só então decidirei o seu destino. Olhe para esse espelho que está à sua frente. Veja-se por ele, e pinte o que vê. Pinte a si mesmo, esse poderá ser o seu retrato final, dependendo de como você se retratará. E nós nos postaremos atrás de você, para que não possa destruir tal quadro. O rei fez um gesto e todos o seguiram, se postando atrás do pintor, a uma distância em que poderiam acompanhar cada pincelada. O pintor resignou-se e começou a trabalhar. Primeiro começou a pintar as laterais do quadro, preenchendo as nuvens, o céu, a terra, uma árvore, e o tempo foi passando, alguns dos ministros e súditos foram adormecendo, menos o rei, acostumado a longas noites em claro durante as batalhas contra inimigos do reino. Até que o pintor, não tendo mais jeito, começou a trabalhar o ponto principal do quadro. Não era um retrato de rosto, isto todos perceberam, quando viram os primeiros esboços e as primeiras imagens serem retratadas. Era uma pessoa em pé. Quando o artista começou a pintar a silhueta de si mesmo, o rei ficou de pé e se aproximou, acordando os que estavam próximos, e vários olhos ficaram fixos no quadro. As mãos do pintor se moviam agora freneticamente, e, em poucos minutos, ele terminou a pintura, e se afastou um pouco para o lado, para que todos vissem. Ao centro do quadro, estava retratada a figura da morte, com sua ameaçadora foice.
O rei gritou, o que fez com que os ainda adormecidos acordassem assustados.
— Ousas dizer que és a morte? — disse ele, e, com uma alta gargalhada, mandou os guardas segurarem as mãos do pintor, como se temendo alguma coisa. — Confirmas que és a morte?
— Não, não sou a morte, não a morte como imaginais que ela é. A morte, retratada aqui neste quadro, não existe, ou melhor, existe na figura de muitos. A morte não é uma só, são várias entidades, que andam por este mundo. E elas contam com aliados, com pessoas como eu, que tem o dom de ver o fundo da alma de cada um. Homens e mulheres como eu, que podem identificar pessoas de alma má, a quem a morte leva mais rápido, ou pessoas de alma boa, que podem ficar aqui por mais tempo. Eu não sou a morte, eu sou alguém que diz à morte, à legião de mortes, quem deve ir mais cedo, quem deve ir mais tarde.
Nesse momento um frio intenso começou a percorrer o castelo, e à sua passagem as pessoas desmaiavam. De pé só ficaram o rei e o pintor, que disse:
— Vossa majestade foi a alma mais horrenda que já retratei. No meu ofício eu sempre espero que os homens possam mudar suas almas, então espero alguns anos antes de apontar seus destinos finais. Alguns conseguem, mas outros possuem a alma tão negra que, mesmo que eu esperasse por mil anos, eles continuariam maus. Tu és um desses, o pior que já vi. Pela primeira vez eu me regozijo por ter visto o mal ao invés do bem. Eu vi o mal em vossa alma, e agora, vossa hora chegou.
Quando todos acordaram, o rei estava morto, com os olhos esbugalhados, como se tivesse visto a própria morte. O quadro no cavalete havia mudado, era uma paisagem alegre, ensolarada, mostrando parte do reino e o castelo, com uma estrela brilhante em cima, como se a anunciar que novos e melhores tempos viriam. Do pintor, nunca mais se soube nada.


PRESENTE DE DEUS

Asséde Paiva

Será que aconteceu? Foi em dezembro de 19...
O menino de dez anos ou pouco mais morava na roça, era filho de sitiantes, pessoas quase pobres, mas tinham o suficiente para sobrevivência. Dava para comer carne duas vezes por mês, ovos uma vez ou outra e nos mais dias só legume, arroz angu e feijão. Dava para matar a fome, sobreviver. Ainda assim, o menino já trabalhava: capinava em volta do terreiro, aguava as hortaliças, pastoreava vacas, cortava capim pros bezerros, em suma, era o moleque do terreiro, por ser franzino não trabalhava no pesado: capina de plantações de milho e arroz; roçado de pasto, ou fazer valeta e aração de terra. De qualquer maneira, trabalhava sempre todo o dia, e até depois de o sol cair no horizonte, quando, então, descascava milho e debulhava as espigas para levar o milho ao moinho, em outro arraial, a três quilômetros de distância de sua morada. O verbo trabalhar, conjugado sempre no presente do indicativo; o verbo brincar só nos dias santos de guarda. Vida dura, né? Divertir, para quê? Nada disso, nem nos domingos e feriados: ou seja, mourejava os trezentos e sessenta e cinco dias do ano. Na parte da tarde frequentava a escola municipal. E não tinha merenda escolar não, só água de mina, muito boa, por sinal. Amiguinhos eram três: Chiquinho, o bezerrinho, cria de Figurona; o cavalo, Pretinho, e o cachorro, Capim. Na escola, por ser retraído, era quase invisível. Seus brinquedos: dois sabugos de milho, que jungidos formavam a junta de bois; caixa de fósforos vazia, sobre duas tampinhas de garrafa, fazia as vezes de caminhão. A bola era de meia, portanto murcha, mole e sem repique. Pois bem, esse menino tinha um sonho, tal e qual os meninos têm... SONHOS. “Quem sabe Papai Noel lhe daria uma bola para brincar nas mínimas horas de folga?” E ele, o pobrezinho, certa feita criou coragem,
pediu uma bola ao Noel num Natal. Que inocência! Até aquela data, Noel vinha apenas para os meninos e meninas de melhores posses no arraial: os remediados. Noel passava sempre para os meninos ricos. No fim do ano, pôs a meia na janela, com o bilhete dentro e foi deitar. Seus pais garantiram que Papai Noel não falharia. Eles tinham um sorriso maroto quando lhe disseram que Noel viria daquela vez, sem falta, pois tinha sido obediente, trabalhador e estudioso. O que ninguém sabia ou se importava era que o menino estava doente, muito doente. Andava arrepiado como passarinho na muda e segurando a dor, escondendo o sofrimento atroz... Magro era e ninguém notara que estava mais e mais definhado, como que transparente. Ele tinha nas partes baixas, um tumor maligno. Por vergonha, guardava a dor para si. Curvado, com mão na virilha, ele deitava na grama quando possível (aí era chamado preguiçoso). Naquele dezembro, sentiu calafrios e, se soubesse, talvez fosse febre, muita febre. Mesmo doente e febril, deitou-se cheio de esperança. Afinal, Papai Noel estava pra chegar; promessa é promessa. E chuva miúda caía sem cessar. Dormiu cheio de fantasia e expectativa. A bola chegaria de manhã, cedinho, certo? Papai Noel tem palavra... Manhã de 26/12... Acordou molhado de suor, entreabriu as pálpebras. No cantinho, semicoberta pela colcha de retalhos estava algo redondo, amarronzado... “A bola, com certeza”, levou a mãozinha para apanhá-la; curiosamente, achou-a pesada, dura e felpuda. Logo soube:
não era a bola, não; era um coco-da-baía. Suspirou, demonstrando imensa tristeza. Pousou a mão em um boneco de louça, com nariz de mentiroso, de Pinóquio; ou seja, imenso narigão. Simbolicamente representava a mentira dos outros para ele. Humilhação suprema... Era demais para seu coração fragilizado. Chorou em silêncio, e as lágrimas escorreram para a alma, os olhos secos, evanescentes. E veio a crise: dor excruciante fê-lo dobrar-se e empapar-se de suor. Depois, um soluço... e acabou. Sua face refletia paz. Nada mais tinha importância, nada. O coco transformou-se em suave e macia bola de borracha, a dos seus sonhos; o boneco abriu os braços, que se tornaram asas. Asas servem para voar. O anjo e o menino segurando a bola, sorridentes foram para o céu, jogar bola com Deus, Pai.
Bem-aventurados os que choram e sofrem, porque serão consolados. (Mateus 5:4)

UM BICHO MUITO ESTRANHO

Dirceu Avelar

Do bicho de duas cabeças tive notícia na fazenda de um tal Maneco Antunes. Não foi nos tempos de hoje, mas quando era mais moço e ganhava a vida no duro negócio de comprar e vender boi sertão afora. O fazendeiro, eu já conhecia de nome e me aconteceu de pernoitar de passagem na sua fazenda. Era homem sisudo, criador de gado de corte e que trazia no corpo curtido e nas rugas do rosto as más escritas do tempo.
Hospitaleiro, de boa prosa, mas retraído, conforme a natureza daquela gente de vida isolada na imensitude do sertão mineiro. “O sertão está em toda parte... O sertão é o mundo”, escreveu João Guimarães Rosa. Pois era lá que vivia o fazendeiro, viúvo, com uma filha solteira e mais as empregadas da casa, só que delas não vi senão as caras envergonhadas a me espiar de longe. Gente endinheirada, dizia-se por conta das cabeças de gado à solta na pastaria.
Esse Maneco Antunes me ficou na lembrança, além do mais, pela esquisitice da cabeleira enrolada em tranças e presa nas costas; disse-me que era por causa de uma promessa da mãe pra Nossa Senhora, quando era ele criança e lhe acontecera de ser picado por cobra peçonhenta,
conhecida por Jararaca. A mãe, conforme o costume religioso do povo mais antigo, fizera a promessa na hora do desespero e coube a ele efetuar o pagamento pra santa, daí que precisou deixar a cabeleira crescer e sem nunca mais ver cara de tesoura. Promessa é promessa e não se pode deixar de honrar o prometido, mesmo porque o veneno dessa cobra faz defunto na hora.
Com a pinga do lado e a bacia de brasas junto aos pés, por causa do frio que cortava gelado dentro da casa desconfortável, sede da fazenda, ficamos a trocar prosa à espera do sono que tardava. Ele bebia um trago, puxava fumaça do cigarrinho de palha, lampião a espalhar cheiro forte de carbureto no ambiente e, vez por outra, tirava do bolsinho da calça o relógio folheado pra fingir olhar as horas e exibir: “Oméga” legítimo! — e tossia e cuspia no chão, sem fazer caso da minha presença.
Lá pelas tantas, saiu com o assunto de certo bicho aparecido na sua fazenda em tempos passados; bicho sem registro, uma vez que nunca tinha sido visto antes na região e nem dele se tinha ouvido falar que existisse. E de fala mansa, pausada, foi desenrolando o caso, mas antes me empurrou um copo pelo meio de uma cachaça de fabricação artesanal e insistiu para que bebesse. O resultado foi desastroso e ele fez ar de gosto. Nunca fui muito de bebida, mas não podia fazer desfeita nas circunstâncias. Bom, aí, enquanto eu tossia vermelho e engasgado, ele começou a contar:
“O senhor me acredite, pois aconteceu aqui nas minhas terras. Eu tinha saído pra correr as pastagens, conforme era do meu costume, e me deparei com aquela ossada limpa de carne pros lados do rio. Apeei pra examinar. Era ossada de boi, conforme já desconfiava. Fiquei encabulado, porque fazia tempo que onça não se aventurava por aqui. No dia seguinte voltei lá atrás de pegadas nos bebedouros do rio e nem sinal!
“Daí pra frente, outras carcaças foram aparecendo e não se descobria pegadas da desgraçada da onça. Aventurei na mata com os meus cachorros e nada!... Também não se viam pegadas de bichos diferentes dos costumeiros. O gado ficava solto e não era pra se admirar a existência de onça, ainda que escoteira, visto que esse animal costuma andar grandes distâncias sozinho. Na verdade, fosse lá só uma ou outra cabeça de gado e não ia me tirar o sono, mas a coisa começou a se repetir demais e achei de tomar providência, porque o bicho estava achando fácil e se acostumando. A raiva cresceu e decidi acabar de vez com a festa dele.
“Nessa justa ocasião foi que me apareceu um caboclo de outra fazenda e ele contou que por lá estava sucedendo a mesma coisa. Disse que marcas de onça não encontraram, mas um grupo de índios caiapós, aqui da região, dera notícia de sinais de certo bicho que não era canguçu, por causa das marcas deixadas no barro de uma lagoa.
“A notícia se espalhou e o povo das fazendas ficou amedrontado. Dizia-se que não era bicho da nossa região. Daí pra frente, as tais pegadas foram aparecendo em outras propriedades. Mas veja o senhor que o tal bicho até parecia muito inteligente, pois caçava ora aqui, ora acolá, distribuindo o prejuízo que dava.
“Aí correu notícia de que um caçador havia dado com os olhos nele. Era noite de lua e ele viu de longe, no campo, o que lhe pareceu ser uma pedra escura e muito grande, mas que se mexeu e se levantou do chão. O caboclo jurou que era o diabo, porque tinha dois chifres, duas cabeças e era da altura de uma casa... E isso além de ter cinco pernas e um rabo curto. Diante da notícia assustadora começaram as rezas; as procissões com imagens de santo pelos campos e as missas nas fazendas. Eu até mandei rezar algumas missas aqui na minha fazenda, por precaução!”
O homem fez pausa, puxou fumaça e ficou a olhar pra minha cara. Aí eu dei o meu palpite: — Pois veja só o senhor... Eu posso jurar que nunca ouvi falar que existisse uma coisa dessas!... — Onde foi que se viu bicho desse tamanho e ainda por cima carnívoro!... Não seria exagero do tal caboclo que disse que viu?
Revirei, o copo sem reparar e quase morri de novo com a diaba da cachaça. Na verdade, eu não sabia o que dizer diante da seriedade dele, daí que ele prosseguiu:
“Pois era o de que todo mundo se admirava. Os caboclos, com mulher e filhos, andavam com medo de que começasse a devorar gente. Havia pequenos fazendeiros já falando em vender as propriedades e mudar da região. Certo dia, uns vaqueiros chegaram com a notícia de que tinham visto pegadas estranhas num bebedouro do rio, e bem aqui nas minhas divisas. Fui lá e fiquei estarrecido. Aquilo só podia ser mesmo o diabo. Nunca tinha visto pegadas daquele tamanho. Daí pra frente, ninguém mais queria se arriscar a entrar na mata e não se sabia o que fazer. As rezas, as missas, as procissões adiantaram de nada, e os meus bois continuaram a ser devorados.”
— E se livraram do bicho como? — arrisquei, receoso de ofender com a minha descrença estampada na cara, mas ele prosseguiu depois de bicar a pinga e chupar o cigarro:
“Aconteceu que um amigo fazendeiro, lá de Goiás, me recomendou um caçador de onças e prometeu mandar o caboclo aqui pra gente ter um entendimento. O tal caçador se chamava João Firmino, mais conhecido por Firmino do Tiro Certeiro. Tudo combinado, ele trouxe mais dois companheiros pra ficar uns dias aqui na fazenda. O tal Firmino não tinha notícia de nenhum animal parecido com a descrição feita, daí que ficou muito interessado na caçada. Foi ver as pegadas e estranhou o tamanho e o jeito delas, coisa que nunca havia visto antes. Garantiu que nem no sertão e nem no pantanal, por onde já andara caçando a vida toda, havia animal com semelhantes pegadas. Esperou uma noite de lua e saiu com os outros. Não levaram cachorros pra não assustar e ficaram amoitados nas proximidades do bebedouro.
“Na primeira noite, aconteceu nada. Os bichos aparecidos eram os costumeiros. Na noite seguinte foi que viram e estranharam uma coisa espantosa a se mover, saindo da mata. Ficaram bestificados a espiar por detrás de uma pedra. O senhor vai se admirar porque, de fato, era um monstro do tamanho de uma casa; e aí ele ergueu no ar uma das pernas, aquela que nascia na cabeça dele e descia no meio das outras duas da frente, pra soltar um berro que fez os bois estourar no pasto. Aquela perna, o senhor me acredite, parecia o berrante de um vaqueiro condutor de boiada, só que era mais comprida.
“Depois dos berros, o monstro se movimentou no rumo do bebedouro. Os caçadores ficaram sem saber se valia a pena atirar de onde estavam, por causa da distância e do risco de ferir de leve o animal e, nesse caso, ficar ele mais perigoso, daí que resolveram permanecer na tocaia e observar. O bicho parece que desconfiou do perigo e ficou parado, depois voltou atrás e se enfiou na mata. Nas noites seguintes ele não apareceu mais.
“Por força disso, os caçadores levaram algumas cabeças de gado mais pra junto do bebedouro. Aí, pela madrugada, ele apareceu. Os homens estremeceram assombrados, pois, com aquela claridade toda da lua cheia puderam ver que era corcunda e tinha de fato duas cabeças e dois chifres compridos, apontados pra frente. A cabeça de cima era redonda e quase do tamanho de uma roda de carro de boi, e era toda rodeada de cabeleira; essa cabeça estava virada pro lado dos bois. Agora, a cabeça de baixo, essa era maior do que a de cima e tinha os chifres e aquela perna que saía dela e servia de berrante, além de duas orelhonas
do tamanho de um homem cada uma!... O senhor é capaz de imaginar um bicho desse jeito? Só podia ser o diabo, o próprio!
“Os três ficaram a olhar aquela coisa monstruosa. As reses empinaram cabeça, prontas pra debandar. Aí o monstro mudou de rumo e foi se afastando do bebedouro sem pressa e bem na direção dos bois; andou um pouco e parou; avançou mais e voltou a parar. Aí os caçadores decidiram e apontaram as espingardas; combinaram de atirar primeiro e ao mesmo tempo na cabeça de cima e, em seguida, na de baixo. O bicho se aproximou mais um pouco dos bois e se abaixou, dobrando as pernas da frente e depois as de trás. Ficou lá abaixado no mato.
“Os três fizeram pontaria e já iam atirar, mas aí aconteceu uma coisa que ninguém podia esperar. Veja o senhor que, de repente, a cabeça de cima pulou e virou um bicho cabeludo e que se encolheu rente com o chão e veio de manso pra pegar um boi. Igualzinho faz o gato que vai pegar o rato. O gado todo refugou assustado e disparou. O bicho cabeludo foi num carreirão pra cima deles. Disseram que esse tal era mais maior do que uns dois canguçus, dos grandes!”
— Isso é duro de acreditar, seu Maneco!... Olha, não fosse o senhor...
Eu nem pude acabar de falar, porque a garganta queimava da cachaça que ele não parava de me pôr no copo. Ô fogo dos inferno!... E ainda ter de engolir uma história daquelas!...
“O senhor não me acredite, se não quiser!... Eu tive as provas e não sou homem de contar mentira. Pois a segunda cabeça, a que virou outro bicho, veio pra cima de um boi desgarrado na rabeira dos outros. Mas aí os caçadores atiraram. Foram três tiros, três balas... e o bicho revirou no ar e caiu estrebuchando.”
— Eu teria dado no pé e fugido na frente dos bois!... — exclamei, sem querer.
“Não seria vergonha, mas aqueles três estavam acostumados a caçar bicho bravo por esse sertão afora... Pois foi, e mataram aquele, mas o outro, o que tinha ficado de longe, esse se levantou e veio bufando e berrando, fazendo a terra tremer com o peso dele; e veio furioso pra cima dos caçadores. Aí eles correram, montaram nos cavalos e fugiram. Quando o bicho desistiu da perseguição, eles voltaram pra ver se conseguiam pegar e trazer o que tinham matado. E o que viram deixou os três mais que de queixo caído. Pois não é que o bicho maior agarrou o morto com a perna de berrante, jogou no lombo e se meteu dentro da mata!”
— Verdade?! Juro que ouvi contar de mula-sem-cabeça, de lobisomem, saci, alma d’outro mundo e de mais uma infinidade de outros, mas nunca nada parecido com esse bicho de duas cabeças!... O povo tinha razão de andar apavorado! — acrescentei, arregalando os olhos (eu precisava agradar e fazer meus negócios).
“Pois foi, sem tirar nem pôr, do jeito que estou contando pro senhor. Passados uns tempos, os índios deram notícia de ter encontrado o bicho maior caído e morto juntinho dos ossos do outro menor. Mas o mistério só se esclareceu mesmo foi muito mais tarde. Fica o senhor sabendo que eram de fato dois, só que um, o mais menor e matador de gado, esse andava empoleirado no lombo do maior, de tal forma que nunca se tinha encontrado as pegadas dele. A notícia se espalhou e todo mundo foi ver lá na mata.
“Mas aí apareceu de passagem um moço jornalista, homem instruído, e ele esclareceu tudo pra gente. Contou que o bicho maior chamava elefante e o menor era o tal de leão. A gente não tinha conhecimento desses bichos.
“O moço explicou que não eram bichos daqui, da nossa terra, mas que foram trazidos do outro lado do mundo ainda filhotes, e treinados pra trabalhar num circo de diversão. E foi daí que faziam um número nunca visto antes: o bicho menor, o leão, subia no lombo do elefante e os dois andavam pra lá e pra cá pro povo assistir.”
— E como esses bichos de circo vieram parar aqui no sertão?!
“Aí eu explico. Foi que o moço jornalista contou que já tinha assistido os dois num circo que viajava por esse Brasil inteiro e, quando o circo voltou na cidade dele sem os bichos, ele ispiculou do dono o que tinha acontecido.”
— Sim, e aí?
“Aí o dono do circo contou que havia comprado os dois de outro circo por um preço vantajoso, porque já eram de mais idade, mas foi que começaram a dar trabalho demais e prejuízo, além de que não havia nada que chegasse pra matar a fome deles. O remédio, pra não fazer pior, foi soltar os dois no sertão e deixar que se arranjassem por conta própria. O senhor vê que os bichos continuaram juntos. O grande não comia carne, mas ajudava o companheiro a caçar nas fazendas. Pra tudo existe explicação neste mundo!... A gente é que é muito ignorante.”
Maneco Antunes voltou a puxar o relógio e viu que era hora de dormir. O cansaço do dia e a cachaça estavam pesando nos meus olhos. No dia seguinte, com o Sol a crescer no horizonte, me despedi e segui viagem pensando comigo: “Pois é, ninguém pode imaginar as coisas que se ouvem por esse Brasil afora!...” Coisas de arrepiar defunto e até de deixar a gente com a pulga na orelha, é ou não é?...


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